Transcrevi este livro conforme ortografia da época.
BIBLIOTECA INFANTIL
PROF. ARNALDO DE OLIVEIRA BARRETO
MEMORIAS DE UM BURRO
AUTORA: CONDENSA DE SÉGUR
4ª EDIÇÃO
LIVRO X
BIBLIOTECA INFANTIL
PROF. ARNALDO DE OLIVEIRA BARRETO
MEMORIAS DE UM BURRO
AUTORA: CONDENSA DE SÉGUR
4ª EDIÇÃO
LIVRO X
DEDICATORIA
AO MENINO HENRIQUE, MEU AMO ACTUAL
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Meu querido amosinho!
Você tem-me tratado bem, mas tem falado com desprezo dos burros em geral. Quero que melhor saiba qual a especie de animal que é realmente o burro, e, com este fim, escrevi esta historia de minha vida. Ha de vêr, meu amosinho, que nós, os burros, temos sido, e ainda somos, muitas vezes maltratados pelos homens. Somos, é verdade, ás vezes bem mansos; mas devo confessar que na minha mocidade me portei ás vezes mal. Você há-de vêr como fui castigado, como fui infeliz, como me arrependi, e como meus amigos e amos me perdoaram e me trataram bem novamente. Assim, depois de ler a minha história, Você nunca mais dirá "estupido como um burro", ou "cabeçudo como um burro"; mas dirá "sensato como um burro", "habilidoso com um burro"; ou "manso como um burro".
Hi-án! Meu querido amosinho, Hi-án!
Desejo que Você nunca seja o que eu fui, quando moço.
Sou de Você
Criado humilde
MEMORIAS DE UM BURRO
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Não me lembro dos meus tempos de criança; provavelmente fui infeliz como todos os burrinhos, bonito, engraçado, como somos todos. Era, com certeza, cheio de espirito, porque velho, como hoje sou, ainda tenho mais do que os meus companheiros. Logrei mais de uma vez os meus pobres donos, que eram apenas homens e que, por consequencia, não podiam ter a inteligencia de um burro.
Vou começar por contar ao meu menino uma das peças que lhes preguei nos meus tempos de criança.
CAPITULO I
Os pobres homens não sabem, ás vezes, tanto como os burros; e a prova é que você não sabe que ha feira em nossa cidade todas as terças-feiras, e que nella se vendem legumes, manteiga, queijo, ovos, fructas, e muitas outras cousas.
Para nós, pobres burros, a terça-feira era o peior dia da semana; e para mim, especialmente. Imagine! Cada terça-feira, a minha ama me carregava ás costas com todos os ovos que as suas gallinhas punham, com toda a manteiga e todo o queijo que fazia do leite de suas vaccas; com todos os legumes da sua horta; com toda a fructa madura do pomar. Por cima de tudo isso, ella se abancava, e surrava-me a valer com um bastão duro e nodoso. Não comprehendia que as minhas pobres pernas finas não podiam leva-la, tão gorda, com toda aquella carga ao mercado, tão depressa como ella queria. Eu ia a trote, quasi a galope, mas mesmo assim ella não ficava contente e me surrava.
Zangava-me de tanta crueldade e injustiça. Quiz desmonta-la um dia, mas eu estava tão carregado que podia apenas sacudi-la um pouco. Em todo caso sentia prazer em sacudi-la bem.
Ella, então, resmungava.
-Ah, animal dos diabos! has-de me pagar! e me surrava até não poder mais.
Assim, chegámos um dia á cidade.
Tiraram-me os cestos que me haviam magoado o lombo, e pozeram-nos no chão.
Minha ama amarrou-me a um poste e foi jantar.
Eu, de meu lado, estava morto de fome de sêde, e ninguém se lembrou de me offerecer uma misera folha de capim ou uma gotta de agua.
Emquanto a mulher do lavrador estava ausente, consegui chegar a cabeça perto de um cesto de legumes. e regalei-me com alguns repolhos e algumas folhas de alface.
Nunca provei cousa tão bôa.
Acabava de comer o ultimo repolho e a ultima alface daquelle cesto, quando minha ama chegou.
Viu o cesto vasio e logo começou a gritar.
Olhei para ellla com um ar tão satisfeito que logo adivinhou ser eu o criminoso.
Não quero repetir-lhe as palavras feias que ella me disse.
Era uma pessoa sem educação e, quando zangada, usava de linguagem que me fazia corar, embora sendo burro.
Depois de me cobrir de injurias, pegou no bastão e surrou-me sem piedade.
Bateu-me tanto que, afinal perdendo a paciencia, atirei-lhe tres couces.
O primeiro quebrou-lhe o nariz e dois dentes: o segundo torceu-lhe um braço; o terceiro estendeu-a no chão.
Umas vinte pessoas caíram logo sobre mim a bater-me e maltratar-me. Entretanto, levantaram e levaram a minha ama, deixando-me amarrado ao poste.
Perto do poste ficaram estendidas as cousas que eu tinha trazido do mercado. Lá fiquei muito tempo.
Por fim, vendo que ninguem me dava attenção, comi o conteúdo de mais um cesto; roi a corda que me prendia, parti-a, e dirigi-me tranquilamente para casa.
Não tencionei fugir; julguei-me sufficientemente vingado.
A pequena Maria, filha da minha ama, ao vêr-me, logo gritou: "Olha! ahi está o Neddy! Como é que vem tão cedo! Jayme, vai tirar-lhe a cangalha".
- Ah! burro damnado! remungou Jayme; porque será que vem sósinho?! Com certeza fugiu da mamãe. E accrescentou, dando-me um pontapé:
- Besta!
Quando me tirou a cangalha e o freio, parti a galope para o pasto.
De repente ouço gritos; olho por cima da cerca e vejo mais homens conduzindo minha ama para casa.
Ouvi, então, o Jayme dizer:
- "Meu pae, vou levar o chicote grande, e amarrar aquelle burro a uma arvore, para surra-lo até não se poder ter de pé".
- Está bem, meu filho, disse o velho, mas toma cuidado, que elle custou dinheiro. Quero vende-lo no primeiro dia da feira.
Ouvindo isto, estremeci; não me importava que perdesse ou não o seu dinheiro. Dei uma corrida, pulei a cerca, e fugi a todo galope.
Quando me achei longe, fóra do alcance da voz, parei e achei-me perdido na espessura de uma grande e bella floresta, cheia de tenro capim e musgo, e de limpidos regatos.
Ella, então, resmungava.
-Ah, animal dos diabos! has-de me pagar! e me surrava até não poder mais.
Assim, chegámos um dia á cidade.
Tiraram-me os cestos que me haviam magoado o lombo, e pozeram-nos no chão.
Minha ama amarrou-me a um poste e foi jantar.
Eu, de meu lado, estava morto de fome de sêde, e ninguém se lembrou de me offerecer uma misera folha de capim ou uma gotta de agua.
Emquanto a mulher do lavrador estava ausente, consegui chegar a cabeça perto de um cesto de legumes. e regalei-me com alguns repolhos e algumas folhas de alface.
Nunca provei cousa tão bôa.
Acabava de comer o ultimo repolho e a ultima alface daquelle cesto, quando minha ama chegou.
Viu o cesto vasio e logo começou a gritar.
Olhei para ellla com um ar tão satisfeito que logo adivinhou ser eu o criminoso.
Não quero repetir-lhe as palavras feias que ella me disse.
Era uma pessoa sem educação e, quando zangada, usava de linguagem que me fazia corar, embora sendo burro.
Depois de me cobrir de injurias, pegou no bastão e surrou-me sem piedade.
Bateu-me tanto que, afinal perdendo a paciencia, atirei-lhe tres couces.
O primeiro quebrou-lhe o nariz e dois dentes: o segundo torceu-lhe um braço; o terceiro estendeu-a no chão.
Umas vinte pessoas caíram logo sobre mim a bater-me e maltratar-me. Entretanto, levantaram e levaram a minha ama, deixando-me amarrado ao poste.
Perto do poste ficaram estendidas as cousas que eu tinha trazido do mercado. Lá fiquei muito tempo.
Por fim, vendo que ninguem me dava attenção, comi o conteúdo de mais um cesto; roi a corda que me prendia, parti-a, e dirigi-me tranquilamente para casa.
Não tencionei fugir; julguei-me sufficientemente vingado.
A pequena Maria, filha da minha ama, ao vêr-me, logo gritou: "Olha! ahi está o Neddy! Como é que vem tão cedo! Jayme, vai tirar-lhe a cangalha".
- Ah! burro damnado! remungou Jayme; porque será que vem sósinho?! Com certeza fugiu da mamãe. E accrescentou, dando-me um pontapé:
- Besta!
Quando me tirou a cangalha e o freio, parti a galope para o pasto.
De repente ouço gritos; olho por cima da cerca e vejo mais homens conduzindo minha ama para casa.
Ouvi, então, o Jayme dizer:
- "Meu pae, vou levar o chicote grande, e amarrar aquelle burro a uma arvore, para surra-lo até não se poder ter de pé".
- Está bem, meu filho, disse o velho, mas toma cuidado, que elle custou dinheiro. Quero vende-lo no primeiro dia da feira.
Ouvindo isto, estremeci; não me importava que perdesse ou não o seu dinheiro. Dei uma corrida, pulei a cerca, e fugi a todo galope.
Quando me achei longe, fóra do alcance da voz, parei e achei-me perdido na espessura de uma grande e bella floresta, cheia de tenro capim e musgo, e de limpidos regatos.
CAPITULO II
Passei um mez na floresta, e realmente passei bem, tendo o cuidado de me afastar cada vez mais da aldeia onde morava meu antigo amo.
Vinha chegando o inverno; pensei quer tempo de procurar uma morada confortavel.
Atravessei, pois, a floresta a trote, e sai do outro lado.
Passados alguns dias, cheguei a uma aldeia, de que nunca ouvira falar.
Senti que ahi estaria livre da perseguição.
Um pouco afastada da aldeia, havia uma casinha solitaria, no meio de um jardim. Uma boa mulher estava sentada á porta, bordando.
Parecia bondosa e triste. Cheguei-me para ella, e puz a cabeça por cima do seu hombro.
A bôa mulher assustou-se, e deu um grito e um pulo.
Não me mexi; antes, levantei para ella um olhar manso e supplicante.
- Pobresinho! disse, afinal; não me parece ser máu. Si não pertencesses a ninguem, gostaria bem que tomasses o logar do meu pobre Pêlo-de-Rato, que morreu ha poucos dias de velhice. Assim poderia ainda ganhar a vida, levando de novo os meus legumes ao mercado.
- Mas, acrescentou ella, com um suspiro: com certeza tens dono em alguma parte.
- Avósinha, com quem está você falando? perguntou uma voz agradavel de dento de casa; e um menino bonito e sympatico saíu á porta. Tinha seis ou sete annos; estava vestido pobremente, mas muito limpinho. Olhou para mim com um ar de admiração e ao mesmo tempo de medo.
- Avósinha, posso fazer-lhe uma festa?
- Sem duvida, meu querido Jorge! disse a velha; mas toma cuidado que elle não te morda!
O menino estendeu a mão, mas era tão pequeno que tinha de se alçar na ponta dos pés para me alcançar o lombo. Não me mexi, de medo de assusta-lo; só virei a cabeça e lambi-lhe a mão.
- Oh! avósinha! Avósinha, olha! que joia de burro! elle me lambeu a mão!
- É extranho, disse a avó de Jorge, que esteja aqui sósinho! Vá á aldeia, meu querido, e pergunte si alguem perdeu um burro. Talvez que o dono esteja afflicto á sua procura.
Jorge partiu correndo, e eu o segui a trote.
Quando elle me viu chegar e parar perto de um monte de terra, ao lado da estrada, trepou-me ás costas e ordenou:
- Anda!
Parti a galope; Jorge ficou encantado.
Ao chegarmos á hospedaria da aldeia, Jorge gritou: pára!
Parei immediatamente.
- Que quer, menino? Perguntou o estalajadeiro.
- Faça o favor de me dizer si conhece o dono deste burro.
O estalajadeiro veio á porta e me examinou.
- Não, menino, não é meu, e nem de ninguem que eu conheça.
Jorge atravessou toda a aldeia, fazendo a mesma pergunta, mas não encontrou ninguem que me conhecesse.
Voltámos para a bôa velhinha, que achámos ainda senta á porta, trabalhando.
- Então, não achaste o dono, meu querido? Muito bem, nós o guardaremos, até que alguem o reclame. Elle não póde passar a noite toda no campo. Leva-o para a estrabaria do pobre Pêlo-de- Rato, e dá-lhe um pouco de feno e um balde d'água.
Na manhã seguinte Jorge veio buscar-me, e deu-me o almoço.
Poz-me depois um cabresto, e conduziu-me á porta da casa. A avósinha lançou-me ás costas uma leve cangalha e montou-lhe em cima.
Jorge trouxe-lhe, então, um cesto de legumes, que ella segurou ao collo, e partimos para o mercado.
Ninguem, tambem, na cidade me conhecia, e voltei alegremente para a minha nova morada.
Vivi lá durante quatro annos, e fui muito feliz
Trabalhei bem e nunca fiz mal a ninguem. Amava minha velha ama e o meu amosinho. Nunca me batiam, nem me cançavam demasiado, e davam-me o melhor alimento que podiam.
Nós, os burros, não somos gulosos: no verão bastam-nos as folhas de legumes e das plantas que os cavallos e as vaccas não querem comer; e, no inverno, feno, cascas de batata, cenouras e nabos.
A minha tranquilidade, porém, acabou-se. O pae de Jorge era soldado, e um dia voltou para casa, trazendo, com algum dinheiro, a sua baixa do serviço militar. Comprou, pois, uma casa na cidade. A mãe e filho foram morar com elle, e venderam-me a um lavrador vizinho.
CAPITULO III
Meu novo amo não era homem máu; tinha, porêm, o costume, que eu considero vil, de obrigar a todo mundo a trabalhar muito.
Elle costumava arreiar-me a uma carrocinha, obrigando-me a carregar terra, estrume, lenha e muitas outras coisas. Comecei a ficar preguiçoso; não gostava de puxar carroças. Não era que me obrigasse a puxar cargas pesadas demais, ou que me batesse; mas deixava-me sem comer nem beber desde manhã cedo até tres ou quatro horas da tarde.
Ás vezes levava a carrocinha cheia de verdura até o mercado.
Tudo isso me desesperava, e um dia resolvi pregar-lhe uma peça.
Tinha notado que no pasto havia um fosso bem fundo e cheio de urtigas e amoreiras.
Um dia, disse commigo: "Escondo-me naquelle fosso; e, quando vierem buscar-me, o burro terá desapparecido".
E dito e feito.
Logo que vi a gente arrumando a carroça, fui me escapando para o lado do pasto, e deitei-me com cuidado no fosso, escondendo-me entre os arbustos.
D'ahi a pouco ouvi um dos rapazes a chamar-me, e a procurar-me por toda a parte.
Logo depois ouvi o proprio lavrador a dizer:
- Com certeza passou pela cerca. Mas, por onde poderia passar? Não vejo buraco nenhum. Ah! já sei, alguem deixou a porteira aberta. Quem seria? Rapazes, procurem nos campos, que elle não póde estar longe. E, andem depressa, pois está tardando, e não chegaremos a tempo.
Toda a gente da herdade saíu á minha procura.
O sol estava muito quente.
Depois de me procurarem por toda a parte, os pobres empregados voltaram suando e esbaforidos.
O lavrador disse, então, uma porção de palavras feias; declarou que provavelmente alguem me havia roubado, e que eu era muito burro por me deixar roubar.
Arreiou, então, um dos cavallos á carroça e partiu para o mercado já muito tarde, e de muito mau humor.
Logo que vi tudo socegado, dei um galope até a outra extremidade do pasto, para ninguem suspeitar onde estivesse escondido, e comecei a zurrar: "Hi-án! Hi-án!" com toda a força dos pulmões.
Ouvindo-me zurrar, toda a gente da herdade saíu correndo.
"Olá! lá está o burro!" exclamou o vaqueiro.
- Onde seria que elle se metteu todo este tempo? exclamou a mulher do lavrador.
- Como é que entrou outra vez? perguntou o carroceiro.
Eu estava tão contente de ter escapado de ir ao mercado, que me cheguei para elles pulando. Ficaram também contentes de me vêr, que me fizeram muita festa, e me chamaram burro bom e astucioso, por me haver safado dos ladrões.
Senti-me envergonhado; pois não era festa que merecia, mas sim umas bôas pauladas.
Deixaram-me passar todo o dia no pasto; mas a minha conciencia, que me censurava o acto praticado, não me deixou tranquillo.
O lavrador chegou do mercado, e ficou muito surprehendido de me tornar a vêr.
No dia seguinte, elle deu uma volta pelo pasto, e tapou todos os vãos da cerca.
A semana passou sem maior novidades, ate chegar outra vez o dia da feira.
Escondi-me, então, como já o tinha feito.
A gente da herdade não sabia o que pensar e, imaginaram que os ladrões, a quem attribuiam o meu desapparecimento, eram muito habeis.
- Desta vez, disse o lavrador, o burro está bem perdido para nós!
Elle, então, como da outra vez, arreiou um dos cavallos, e tocou-se para o mercado,
Quando tudo ficou socegado, saí do fosso; mas julguei prudente não dizer hi-án! para avisar da minha presença.
Quando me acharam, não mais me fizeram festas; e manifestaram tão pouca alegria, que comecei a pensar que tinham desconfiado de alguma cousa! Mas não me importei, e disse comigo:
- Ah! Sim, meus amigos! Podem considerar-se muito astutos si me apanharem; mas eu é que não pretendo dar-lhes este gostinho!
Quando chegou o dia do mercado meti-me pela terceira vez no fosso.
Estava apenas escondido entre os cardes e amoreiras, quando ouvi o latir do grande cão de guarda, e a voz do lavrador a gritar:
- Aqui, Rover, Rover! Procura! Mette-lhe os dentes!
Num momento Rover pulou para dentro do meu esconderijo, e começou a morder-me as patas de um modo muito desagradavel.
Corri para a cerca, e quiz passar atravéz della, mas em vão.
- Bom Rover, bonito cão! exclamou o lavrador, e atirou-me um laço, amarrando-me a um poste, de onde ouvi dizer que um dos meninos da herdade estivera vigiando o pasto de um logar em que eu o não podia vêr, e que contára tudo.
Traidor!
Odiei este menino desde então! Depois disso, fui tratado com muito mais severidade,
Fecharam-me na estrebaria; mas eu aprendi a puxar ferrolhos e a levantar trincos com os dentes. Saí da prisão!
- Oh! eis aquelle damnado burro outra vez!
O lavrador resmungava e me surrava.
Fiquei cada vez peior.
Comparava a minha vida desgraçada com a vida feliz que levava anteriormente sob o mesmo amo.
Mas, em vez de corrigir-me, tornei-me peior e mais obstinado todos os dias.
Um dia entrei na cosinha e comi todas as alfaces; de outra vez derrubei o menino, que contára onde eu me havia escondido; de outra vez ainda, bebi uma tijella de nata que guardavam para bater manteiga.
Pisei nas galinhas; mordi os porcos: fiz o diabo! A ama desanimada commigo, disse finalmente que não podia aguentar mais tempo, e pediu ao marido que me vendesse na primeira feira.
Assim quando chegou o dia da feita, meu amo levou-me comsigo.
Tive vontade de os morder a todos, antes de me ir embora! Tive medo, porêm, que dissessem ao meu novo amo que eu era muito máu, e não fiz; contentei-me de ser o mais malcriado possivel e de, ao partir, lhes virar as costas com desprezo.
O lavrador vendeu-me a uma familia onde havia uma menina aleijada, que eu devia levar a passear todos os dias.
Fiquei lá pouco tempo, porque a menina morreu, e os seus paes, que não me estimavam, me soltaram para ir onde quizesse e para viver como pudesse.
CAPITULO IV
Passei todo esse inverno sem ter quem de mim cuidasse.
Andei pela floresta, mal encontrando o bastante para comer e beber e não morrer de fome e sêde.
Tive bastante tempo para reflectir nas minhas malvadezas, nos meus despeitos e nas minhas vinganças, para me resolver a seguir outro modo de vida mais honesto.
Quando chegou a primavéra, fui um dia até uma aldeia, á beira da floresta, e fiquei surprehendido de vêr um grande ajuntamento do povo!
Pareceu-me uma procissão; todos vestiam a roupa domingueira.
E, o que era ainda muito mais extranho, achavam-se ali todos os burros da vizinhança! Eram reluzentes e gordos; suas cabeças estavam enfeitadas de flôres e de folhas, e não traziam no lombo nem cavalleiros, nem cangalhas.
Aproximei-me a trote para vêr o que aquillo significava, quando, de repente, um dos meninos me viu e gritou:
- Oh, olhem ali que lindo burro!
- Realmente! disse outro: e como está gordo e bem alimentado! E romperam em gargalhadas,
- Talvez tambem queira tomar parte da corrida, disse um terceiro, mas elle não ganhará o premio! Aposto!
Estes dichotes dos lapuzes aborreceram-me muito; mas pensei que bem poderia tomar parte na corrida, e por isso escutei ainda.
- Onde vão correr? perguntou uma velha que acabava de chegar.
- No prado, ao lado do moinho, disse um homem chamado André.
- Quantos burros vão correr? perguntou a velha.
- Dezesseis, Mãe Evans, e aquele que chegar primeiro ganhará um relógio de prata e uma bolsa com dinheiro.
- Ai de mim! disse a Mãe Evans, eu bem quizera ter um burro! E, então, um relogio! Nunca tive bastante dinheiro para comprar um.
Sympathisei com esta velha. Gabava-me, e com razão, da ligeireza das minhas pernas.
Tanto tempo estive na floresta que não estava nem muito pesado, nem tão gordo, como alguns dos burros enfeitados. Resolvi, pois, entrar na corrida.
Cheguei-me para junto dos outros, e tomei logar entre elles; depois, afim de attrair a attenção, abri a boca e soltei um vigoroso zurro.
- Olá! Acaba logo com isso! gritou um homem chamado Chico. Vai-te embora, burro, com a tua musica!
- Não pódes correr, feio bicharoco!
Fiquei calado, mas não me mexi.
Alguns riram; outros começaram a zangar-se, quando a velha Mãe Evans disse:
- Bem, ficarei com elle. Tomo-o ao meu serviço desde este momento. Elle irá correr para mim.
- Como quizer, disse o Chico, mas para elle tomar parte na corrida, é preciso que você ponha dois mil réis na bolsa que o Juiz tem na mão.
- Prompto! disse a Mãe Evans; e dirigiu-se onde estava o Juiz, a quem pagou a sua quota.
- Perfeitamente, disse o Juiz; inscreve, Ricardo, o nome de Madame Evans.
O escrivão inscreveu o nome da minha nova ama. Estavamos todos em linha no prado. O Juiz gritou: um, dois, tres... largai!
Os meninos que nos seguravam, soltaram-nos, e partimos a todo galope, emquanto a multidão corria ao nosso lado gritando.
Não tinhamos ainda galopado cem metros e já eu ia facilmente na frente de todos.
Tive, mesmo, tempo de virar o focinho e ver como estavam furiosos os meus competidores! Tão furiosos iam, por não me poderem alcançar, que tropeçavam uns nos outros, caindo alguns no chão.
O burro do Chico chegou a alcançar-me duas vezes, mas consegui passa-lo de novo.
Afinal elle agarrou-me a cauda entre os dentes. Senti uma dôr horrivel, que só serviu para me fazer correr mais depressa. Elle largou-me, afinal, a cauda, e eu voei como si tivesse azas. Cheguei ao poste do vencedor primeiro que todos, no meio dos applausos de todos aquelles que não tinham burros no pareo.
O Juiz já se achava sentado a uma mesa para entregar os premios, quando a Mãe Evans, que estava quasi louca de alegria me levou á sua presença.
- Aqui tem o premio, minha bôa mulher, disse o Juiz, e estendeu o relogio e a bolsa à velha.
- Alto, alto! snr. Juiz, não é justo!gritavam Chico e André. Aquelle bicharoco não pertence realmente á Mãe Evans. É um burro sem dono! Tanto é della como é nosso! Afóra elle, foram os nossos que chegaram em primeiro logar. O relogio, pois e o dinheiro nos pertencem.
- A Senhora Evans não pagou os dois mil réis de sua inscripção? perguntou o Juiz.
- Pagou, sim, senhor; mas...
- Alguem protestou na ocasião? perguntou o Juiz.
- Não senhor, mas...
- Fizeram alguma objecção quando os burros iam partir?
- Não senhor, mas...
- Pois, muito bem. É de toda a justiça que Madame Evans receba o relógio e o dinheiro.
- Mas snr, Juiz, não é justo! O senhor...
Quando ouvi isto, abaixei a cabeça para a mesa, e tomei nos dentes o relogio e o dinheiro, depondo-os nas mãos da Mãe Evans.
Esta acção intelligente provocou ruidosas gargalhadas e attraíu-me uma chuva de applausos.
- Ora, ahi está! disse o Juiz, o burro decidiu a favor da Mãe Evans; e accrescentou, com um sorriso, olhando maliciosamente para o Chico e o André: creio que dos presentes elle não foi o mais burro.
- Bravo, snr. Juiz! tem toda a razão! resoou de todos os lados. E todos riram do Chico e do André, que se retiraram muito zangados. E, eu?! Julga você que eu estivesse satisfeito? De modo nenhum. Meu orgulho achava-se ferido. O Juiz fôra muito grosseiro commigo; tinha equiparado aqueles homens, isto é, aquelles animaes estupidos, com um burro intelligente e sensato como eu era! Foi demais!
Recusei, pois, ficar num logar em que recebi tamanho insulto, e voltei-lhe a cauda e fugi a trote largo daquelle povo nojento!
CAPITULO V
Meia hora depois, parei. Achava-me num prado. Doía-me ainda a cauda.
Meditava si os burros não são muito melhores do que os sêres humanos, quando uma mãosinha macia me tocou, e uma vozinha doce disse:
- Ai, pobre burro! Como esta magro! Foi, talvez, maltratado. Anda commigo á casa da minha avósinha. Ella cuidará de ti!
Virei a cabeça. Era um bonito menino de cinco annos mais ou menos, acompanhado da irmãsinha, que tinha só tres anos, e uma governante.
- Que é que esta dizendo, joãosinho? Perguntou a governante.
- Estou-lhe dizendo para vir comnosco, para junto da avósinha.
- Sim, sim! gritou a menina, que se chamava Jenie; quero montar a cavallo nelle. Ponha-me em cima do burrinho!
A governante fez-lhe a vontade, e o Joãosinho me quiz puxar; mas, como não tinha redea, fez-me caricias com a mão, e me cochichou no ouvido.
- Anda, Neddy! Anda, querido Neddy!
Fiquei tão contente da confiança que em mim depositára o pequerrucho, que o fui seguido, tocando-lhe de vez em quando a mão com o focinho.
- Olha, olha é manso! exclamou o Joãosinho.
- Não se fie muito da sua mansidão, meu querido! disse a governante; elle faz assim porque está a sentir o cheiro de pão que você tem no bolso.
Magoei-me tento com esta injusta observação da governante, que virei a cabeça para o outro lado, durante todo o resto do caminho.
Quando chegámmos á casa da avó, deixaram-me á porta e entraram correndo.
D'ahi a poucos momentos voltaram, puxando uma sympathica e bonita velha de cabellos brancos.
- Olha, vóvó! Que lindeza de burro! Elle não poderá ficar comnosco?
- Deixem-me vê-lo mais de perto, meus queridos, disse a velha.
Chegou-se para mim, affagou-me, apalpou-me as orelhas, e poz a mão na minha boca.
Não me mexi, tendo o cuidado de a não morder.
- Realmente, parece muito manso! disse a velha. Emilia, accrescentou, dirigindo-se á governante, diga ao cocheiro que indague de quem é este burro, e si ninguem o reclamar ficaremos com elle. Pobre animal! Como esta magro! Joãosinho vá chamar Roberto; quero que elle o leve á estrebaria, e lhe dê o que comer e beber.
Veio o moço de estrebaria, e levou-me. Seguiram-me joãosinho e Jenie.
Tive por companheiro de estrebaria dois cavallos e um outro burro.
Roberto preparou-me uma bôa cama de palha, e depois trouxe-me uma medida de aveia.
- Roberto, dê-lhe mais! gritou Joãosinho, o que lhe deu é tão pouco! Emilia diz que elle correu na corrida da aldeia. Deve estar tão cançado e morto de fome. Dê-lhe mais! ande!
- Mas, snr. Joãosinho, disse Roberto, si lhe dermos muita aveia, elle ficará esperto demais, e, então, nem o senhor, nem a menina Jenie poderão monta-lo.
- Elle é um burrinho tão manso, que tenho certeza de que andará delicadamente conosco. Anda, Roberto, dê-lhe mais um pouco!
Roberto deu-me mais uma medida de aveia, algum feno e um balde de agua. Ceei que foi um gosto; depois, deitei-me na minha palha, e dormi como um rei.
No dia seguinte o meu trabalho foi levar as crianças para passear uma hora.
Quando voltámos, Joãosinho com as suas proprias mãos, trouxe-me a aveia, e, apezar de Roberto dizer que o não fizesse, deu-me tanto, tanto que chegaria para tres burros de meu tamanho. Ingeri tudo, e claro está que fiquei muito encantado de comer tanta cousa bôa.
No terceiro dia senti-me doente; doía-me a cabeça. É que eu apanhára uma indigestão. Assaltára-me uma íntensa febre. Não podia nem comer aveia, nem feno. Quando Joãosinho me veio vêr, estava ainda deitado na palha, sem poder levantar-me.
- Que é isto Neddy? Ainda está na Cama! gritou Joãosinho. Levante-se Neddy, que já é hora de almoçar. Olhe, cá está a sua aveia!
Tentei levanta a cabeça, que me caíu pesadamente na palha.
- Está doente! Neddy está doente! gritou Joãosinho assustado. Roberto, vem cá depressa, depressa! Neddy está muito doente.
- Que ha? Perguntou Roberto entrando na estrebaria. Ainda esta manhã enchi a mangedoura! Ah, accrescentou elle, olhando para o feno, que estava intacto; elle tem alguma cousa.
Apapou-me as orelhas; estavam muito quentes e eu todo anceava.
Fez uma cara séria.
- Que é? Que é? gritou Joãosinho quasi chorando.
- Está com febre, menino, por haver comido demais. Eu bem lhe disse! Para que lhe deu toda aquella aveia? Agora o de que elle precisa é um veterinario.
- Que é um veterinario? perguntou Joãosinho ainda mais assustado.
- Veterinario é o medico dos animaes, respondeu o Roberto. Ora ahi está! Este pobre burro passou mal todo o inverno, como é facil perceber pela sua magreza e pelo estado de seu pêlo. Depois, aqueceu-se muito na corrida. Devia comer capim fresco e pouca aveia; mas o senhor deu-lhe tanta que elle ficou empanzinado!
- Pobre Neddy! Pobre Neddy! Vai com certeza, morrer, e por minha culpa.
- Calma, calma, snr. Joãosinho, elle não morrerá desta vez. É preciso sangra-lo, e depois solta-lo no pasto.
Roberto mandou chamar o veterinario, e quando ele chegou, pediu ao menino que se retirasse.
Lancetaram-me, furando uma veia do meu pescoço.
O sangue logo esguichou, e comecei a sentir-me melhor. A cabeça já me não pesava tanto. Pude levantar-me, emfim. Roberto estancou-me então o sangue e levou-me para um bello e fresco pasto, onde me deixou em liberdade.
Bom, bom, eu não estava, mas achava-me mais disposto, e durante uma semana apenas trabalhei com os dentes, comendo o tenro capim do pasto.
João e Jenie desvelaram-se por mim; vinham vêr-me duas ou tres vezes por dia.
Cortavam o capim e punham-no em minha boca, para que eu não precisasse abaixar a cabeça. Traziam-me alfaces da horta, folhas de repolho e cenouras; e todas as tardes conduziam-me á estrebaria, enchendo a minha mangedoura de cousas appetitosas, como cascas de batatas e sal.
Uma noite Joãosinho quiz dar-me o seu travesseiro, porque achava que a minha cabeça me ficava muito baixa quando dormia; e Jenie lembrou-se de cobrir-me com a sua colcha para me aquecer. Um outro dia enrolaram-me os pés com algodão em rama para que eu não viesse a sentir frio.
Como desejava eu mostrar-lhes a minha gratidão por tanta bondade! Aí, eu tudo comprehendia, mas minha linguaguem elles não poderiam entender!
Fiquei, finalmente, bom, e com Joãosinho, Jenie, e uns seus primos, que vieram passar algum tempo com a avó, passei um verão feliz.
CAPITULO VI
Quasi ao terminar o verão reuniu-se muita gente em casa da minha ama.
Um dia resolveram fazer uma caçada ás perdizes. Dois dos meninos maiores, um de treze annos, outro de quatorze, chamados respectivamente Ricardo e Eduardo, obtiveram licença para tomar parte da caçada. Com elles também iriam um vizinho com um filho de quinze annos, chamado Norman.
Os primeiros a levantar-se foram Eduardo e Ricardo, que andavam de um para outro lado, com a espingarda debaixo do braço e a bolsa a tiracollo, falando da qualidade da caça que haviam de abater.
- Mas, Eduardo, dizia Ricardo, quando estiverem cheias as nossas bolsas, onde poremos o excesso da caça que havemos de matar?
- Pensava nisso justamente! respondeu-lhe Eduardo. Ah! Já sei: levaremos o Neddy com as cestas.
Não gostei do alvitre lembrado, porque sabia muito bem que aquelles rapazes, caçadores inexperientes, haviam de atirar a tudo que avistassem, e não seria difícil que me acertassem, talvez, alguma bala destinada a qualquer perdiz.
Mas não havia remedio! Quando todos os caçadores se reuniram em frente da casa, já lá estava eu prompto, arreiado pelos meninos.
As perdizes levantaram-se aos bandos.
Eu fiquei prudentemente na retaguarda. Os caçadores postaram-se em linha; e ao longe só se ouviam tiros e mais tiros. Os cães fitavam as orelhas, e, quando viam caír a caça, iam rapidos busca-la. Não tirei os olhos de cima dos dois fanfarrões, que davam mais tiros do que os paes, sem nunca, porêm, acertar, nem quando todos os tres miravam a mesma perdiz.
Ao fim de duas horas as bolsas dos homens estavam cheias; as dos meninos vazias que causavam dó!
- Que é isto! exclamou um dos paes, ao passar junto a mim, quando se dirigiam para a herdade vizinha onde iam jantar. Que é isto! As cestas estão vazias! E deu uma risada.
Ricardo, Eduardo e Norman ficaram muito vermelhos, mas nada disseram, e d'ahi a pouco estavam todos sentados debaixo de uma arvore, em torno de uma cesta de bons petiscos: um pastel de gallinha, presunto, ovos cosidos, queijos e bolos. Os rapazes estavam com um appetite a toda a prova, e comiam vorazmente de modo a assustar a gente que passava.
- Então, rapazes, disse o pae de Norman, não se póde dizer que vocês fossem muito felizes! Pelo menos o Neddy está tão fresco, que parece não haver carregado grande peso.
- Não, disse Norman, é que nós não tinhamos cães como os senhores, para irem busca-las!
- Mataram algumas, então? Porque não foram vocês mesmo apanha-las?
- Impossível! Não vimos onde ellas caíram!
Ouvindo isto todos os homens deram uma grande gargalhada, e os meninos ficaram vermelhos de raiva.
- Pois, meninos, disse o pae de Ricardo, nós ficaremos aqui a descançar uma hora, e vocês poderão ir com um dos guardas e todos os cães, para vêr si são mais felizes desta vez; achando as perdizes, que matem.
- Obrigado, meu pae. Agora, sim, é que vai ser grande a matança! Vamos Eduardo; Vamos Norman.
Os paes recommendaram os guardas para se conservassem perto dos meninos, afim de evitar qualquer imprudencia.
Partiram com os cães, eu segui um pouco atraz, como sempre.
Appareceram as perdizes em quantidade, como de manhã; os cães permaneciam de atalaia. Não tiveram, porém, trabalho: nenhuma perdiz caiu morta!
Norman impacientou-se afinal, por errar todos os tiros; e vendo um dos cães parar e fitar as orelhas, julgou que elle estava amarrando uma perdiz. Fez pontaria e atirou. Ouviu-se um ganido de dôr! O cão deu um pulo para o ar e caíu morto.
- Idiota, resmungou o guarda, e correu para o cão. O senhor matou o nosso melhor cão! Bonito fim de caçada!
Norman ficou pallido de susto. Ricardo e Eduardo sentiam tremer-lhes as pernas.
O guarda dominou sua raiva, e ficou olhando o pobre cão.
Approximei-me para vêr qual que era a infeliz victima de Norman.
Imagine o meu horror, quando reconheci a minha antiga amiguinha Mimosa! Eu a conhecera ainda pequenina, quando ella pertencia ao negociante de cães do mercado, onde eu levava outróra os legumes.
Pobre Mimosa! Quem havia de pensar que seria este o seu fim! Que menino desalmado e vaidoso!
Dirigimo-nos, muito tristes, para a herdade. O guarda poz o cadaver da Mimosa em uma das cesta, e caminhou ao meu lado proferindo ameaças; os meninos seguiram-se cabisbaixos. Minha unica vigança era a reprehensão severa que haviam de receber, e que bem mereciam.
Os caçadores estavam ainda sentados debaixo da arvore, e ficaram admirados de nos vêr chegar.
Percebendo que uma das cestas pendia pesadamente do meu lombo, levantara-se para vêr o que ella continha. Os meninos ficaram para traz, e o guarda adiantou-se.
- Que é que mataram? perguntou um dos caçadores; foi uma ovelha ou um carneiro?
- Nem uma, nem outra cousa, senhor, respondeu o guarda; foi o nosso melhor cão, a Mimosa, que este moço matou, julgando que era uma perdiz.
- Mimosa?! É verdade? Ora esta! Eis ahi o resultado de se trazerem fedelhos a caçar.
- Venha cá, Norman, disse o pae; veja onde o levou a sua vaidade ridicula e idiota! Diga adeus aos seus amigos, e vá immediatamente para casa! Deixe a espingarda no meu quaro, e não pegue mais nella emquanto não aprender a ser mais razoavel e um pouco mais modesto.
- Mas, meu pae, disse Norman, querendo fazer crer que não era tão grave a sua falta; todo o mundo sabe que mesmo os melhores caçadores matam ás vezes por engano os cães!
O pae olhou para elle um momento; depois, voltando-se para os outros com aspecto tristonho, disse:
- Senhores, peço-vos que me desculpeis o haver trazido commigo um menino tão pouco educado. Nunca suppuz que elle fosse capaz de tal impertinencia.
Voltou-se de novo para o filho, e disse severamente.
- Acaba de ouvir a minha ordem; retire-se.
Norman abaixou a cabeça e partiu envergonhado.
- Vocês vêem, meus filhos, disse o pae de Ricardo e Eduardo, a quanto leva a vaidade! Isto podia ter tambem acontecido a qualquer de vocês, tal a certeza que tinham de que nada era mais facil do que caçar. Todos tres portaram-se de uma maneira censuravel durante toda a manhã; desprezaram nosso conselho e a nossa experiencia, e terminaram por ser causa da morte da Mimosa! Evidenciaram, assim, que não têm ainda a idade bastante para caçar. Acho, pois, prudente que vocês ambos voltem tambem para os divertimentos proprios de meninos.
Ricardo e Eduardo abaixaram as cabeças, e sem dizer palavra tambem se retiraram para casa.
Depois do chá, os meninos enterraram no jardim a minha pobre amiga.
CAPITULO VII
Alguns dias depois houve uma feira na aldeia proxima, e lá foram todos os netos e todas as netas da minha ama.
Eramos, ao todo, uns quinze ou dezéseis, contando commigo.
Quando chegámos, só se falava de um burro maravilhoso, muito intelligente, que ia representar d'ahi a dez minutos, do outro lado do campo, onde a feira tinha logar.
- Meu pae, nós tambem queremos vê-lo, disse Eduardo. O senhor nos dá licença?
- Certamente, meu filho, e eu também irei com vocês; mas desde já garanto que esse burro não excede ao Neddy em inteligencia e sagacidade.
Gostei de ouvir a bôa opinião que de mim fazia o cavalheiro, e caminhei orgulhoso á frente da procissão.
A mãe de joãosinho desceu-o e ao Henrique das minhas costas, po-los num banco perto da entrada do circo, que já estava cheio de gente.
A mim deixaram-me do lado de fóra, logo atraz dos meus dois amiguinhos.
D'ahi a alguns minutos começava o espetaculo. Appareceu o dono do celebrado burro conduzindo-o pela redea.
Era um pobre e triste animal, que parecia morto de fome, tão magro estava.
- Joãosinho, disse o pequeno Henrique ao primo, em voz alta bastante para que eu o ouvisse: Aquelle burro não me parece muito habil. Tenho certeza que é muito menos intelligente do que o nosso querido Neddy.
Eu também era da sua opinião; mas fiquei satisfeito de ouvir Henrique manifestar-se assim.
Disse, então, commigo: - Todos hão de verifica-lo daqui a pouco, ou não mais me chamarei Neddy. Deixei o logar onde estava e tomei uma posição no caminho deixado para o povo entrar.
- Senhoras e senhores! começou o dono do burro, tenho a honra de vos apresentar o snr. Muffles, o maravilhoso burro artista. Este animalzinho, meus senhores, não é tão burro como parece. Sabe muito, muito mais do que alguns dos senhores que ahi estão. É um burro sem igual. Vamos, Muffles, mostre á nobre assistencia o que sabes fazer. Faze uma saudação, e mostra a estas senhoras e a estes senhores que desde pequeno foste bem educado. O burro adiantou tres passos, e abaixou a cabeça de um modo melancolico.
Fiquei indignado com o homem, e logo percebi que o pobre Muffles fôra ensinado a chicote.
Resolvi, pois, vingar-me daquelle sujeito, antes de acabar o espectaculo.
- Agora, Muffles, toma este ramalhete, e entrega-o á senhora mais bonita que se acha presente.
Muffles tomou o ramalhete nos dentes, e andou tristemente em torno do circo. Parando em frente de uma mulher gorda e feia, deixou-o cahir-lhe no collo
Eu estava ao seu lado. Vi que ella escondia na mão um pedaço de assucar.
- Velhaco! pensei eu; é naturalmente a mulher do emprezario. Fiquei tão enojado do que via que, antes de alguem m'o impedir, pulei para dentro do circo.
Tirei com os dentes o ramalhete do collo da mulher gorda, e fui a trote colloca-lo aos pés da menina Jenie.
A multidão applaudiu-me enthusiasticamente.
Perguntavam, uns aos outros, quem eu era.
- Tão intelligente! exclamavam.
O dono do Muffles, porêm, não parecia muito satisfeito. Quanto ao Muffles, nem me prestou a attenção. Comecei a pensar que elle devia ser, na realidade, um animal muito estupido, o que é, aliás, não muito commum entre nós, os burros.
Depois de se acalmar a assistencia, o dono do circo disse:
- Agora, Muffles, mostra-nos a pessoa mais tola aqui presente! E assim dizendo deu-lhe uma grande carapuça de papel colorido, adornada de pequeninas rosas.
Muffles tomou a carapuça entre os dentes, e avançou sem hesitar para um rapaz gordo e de olhar amortizado, com cara de porco, e lh'a poz na cabeça. O rapaz gordo era tão parecido com a mulher gorda, que logo se via ser seu filho, isto é, filho do dono do circo, e, portanto, seu comparsa.
- Bom! disse commigo, chegou agora a minha vez! E num pulo arranquei a carapuça da cabeça do tal menino, e puz-me a perseguir o dono do circo, em redor do picadeiro.
A multidão ria a bom rir, e batia palmas sem cessar.
De repente o homem tropeçou e caiu com um joelho no chão; aproveitei o momento e enfiei-lhe na cabeça até os olhos a carapuça!
O homem ficou como uma féra, e começou a pular e a querer arrancar a carapuça.
Levantei-me, então, nas patas de traz, e puz-me a dançar em torno delle.
O auditorio quasi morria de dar gargalhadas!
- Muito bem, burro! Bravo, burro! Você é que é o verdadeiro burro artista! gritavam de todos os lados.
Depois disso, a confusão foi medonha!
Centenas de pessoas saltaram para o picadeiro, e puzeram-se a fazer-me festa.
Tive até medo que me reduzissem a pedaços. O povo de nossa aldeia, que me conhecia, sentia-se orgulhoso de mim, e, no seu enthusiasmo, contava historias maravilhosas e muito exageradas da minha intelligencia e das minhas aventuras. Inventaram que uma vez, num incendio, eu sósinho tinha feito funccionar as bombas; que, depois, subi, por uma escada, ao terceiro andar; que arrombei a janella do quarto de minha ama; que a agarrei pela camisa, e a salvei do incendio, pulando com ella do tecto ao chão.
Que de outra vez, sósinho, eu dei cabo de cincoenta ladrões, estrangulando-os um após outro com os dente, quando dormiam; que fui tão habil, que nenhum delles teve tempo de chamar os outros; que, depois, entrei na caverna onde viviam, e libertei cento e cincoenta prisioneiros que elles lá guardavam para matar e comer.
Que de outra vez, ainda, eu tomára parte em um corrida, em que venci todos os cavallos mais velozes da região, fazendo setenta e cinco leguas em cinco horas.
A multidão ávida por ouvir estas historias phantasticas, agglomerou-se tanto que a policia teve de intervir para a dispersar, pois algumas pessoas, por falta de ar, já haviam mesmo desmaiado.
Imaginai, pois, como foi dificil dali safar-me; foi preciso fingir que queria morder e dar couces em todo o mundo, para me abrirem caminho; mas não magoei ninguem, felizmente.
Cheguei, finalmente á rua.
Olhei em torno procurando os meus amiguinhos. Não os avistei.
É que os paes, logo que viram tornar-se aquelle aperto perigoso para as crianças, as levaram ás pressas.
Foi isto, pelo menos, o que pensei, e por isso sem perder tempo, tomei caminho de casa. Não me enganára.
Antes de andar uma milha alcancei-os a todos, e chegámos á casa na hora do chá.
Depois de tudo acabado, comecei a pensar no infeliz dono do Muffles, e arrependi-me da peça que lhe pregára.
CAPITULO VIII
Nunca pude gostar daquelle menino chamado Norman.
Achava-o covarde e, ao mesmo tempo, vaidoso.
Não me podia esquecer de haver sido elle o auctor da morte da minha amiga Mimosa.
Um dia, elle veio fazer uma visita á casa de minha ama, e insistiu em dar um passeio montado ás minhas costas. Pensei, então, comigo: Bôa occasião para me vingar.
Pouco adiante do jardim havia um matto; e para alêm do matto um profundo fosso, constantemente cheio de lama.
Norman gabava-se de ser bom cavalleiro, e para se exhibir convidou os outros a que fossem vê-lo saltar o fosso.
Todos attenderam o convite, embora não acreditassem lá muito, que elle a tal se aventurasse.
Apenas partimos, indo o Norman escarranchado, ás minhas costas, dei tres corcovos, e saí a disparada do caminho, atirando-me pelo meio das moitas.
- Olhem, rapazes, griotu ainda Norman aos companheiros; vão correndo pela estrada, que vocês ainda chegarão a tempo de me vêr saltar o fosso.
- Espera, que verás como tu o vais saltar! disse eu commigo.
Onde os arbustos eram poucos e bem separados, corri devagar; depois lancei-me inesperadamente ao meio de uma moita de espinheiros.
A minha pélle é grossa e por isso não me feri; mas o rosto de Norman, mãos, pernas, ficaram bem arranhadinhas, e a roupa, rasgada pelos espinhos em muitos lugares.
Quando chegámos ao fosso, seu enthusiasmo estava já bem mais arrefeido; já nem mais se lembrava de transpo-lo, pois fazia desesperados esforços para deter-me, afim de saltar ao chão.
- Isso é que não, meu valente! pensei eu, adivinhando-lhe a intenção; não quero perder esta optima opportunidade para vingar a morte da Mimosa!
Continuei, pois, a galopar pela beira do fosso, e quando cheguei a um logar escorregadio e ingreme, parei de chofre, precipitando o gabola do Norman, que não teve tempo de segurar-se e foi mergulhar na lama grossa e preta.
Chegaram naquelle momento as outras crianças, que tinham vindo a correr pela estrada. Qual não foi, porêm, a sua surpreza e susto quando me encontraram sósinho, a olhar para o fosso! Não avistando o Norman, começaram a gritar:
- Norman, Norman! onde estás?
- Aqui! - Depressa! Acudam-me! respondeu, afinal, uma voz meio suffocada. Olharam para dentro do fosso.
Lá estava o Norman, de pé, sem poder dar um passo, mettido até a cintura na lama.
- Ajudem-me a saír daqui, disse elle, ao avistar os amiguinhos; ajudem-me a saír deste atoleiro.
Os gritos de Norman attrairam a attenção de dois homens que por ali passavam, e que se approximaram do fosso a vêr do que se tratava.
Em poucos minutos arrancaram de uma cerca um páu comprido e o estenderam ao Norman para que nelle se segurasse. Puxaram depois o páu, trazendo Norman para o terreno firme.
O gabola estava em misero estado! Todo molhado e coberto de lama, seus dentes batiam de frio e de susto.
Comecei a arrepender-me do que havia feito, e, assim, deixei-me ficar atraz das crianças que, ás pressas, levavam Norman para casa.
No dia seguinte eu soube que Norman caíra doente.
O medico chamado, receiando que sobreviesse a febre, mandou-o guardar a cama por muitos dias. Quando as crianças lhe perguntavam por Norman, elle sacudia a cabeça, e nada dizia.
Sei, porêm, que elle prohibira ás crianças de me cavalgarem, porque attribuiu a queda do doente a qualquer falta de cuidado da minha parte.
Eu, porêm, que bem sabia como tudo se passara, comecei a assustar-me do que tinha feito.
Quando Norman melhorou, e lhes contou o meu máu procedimento para com elle, todos começaram a tratar-me com menos carinho.
Na manhã seguinte o moço de estrebaria, como de costume, veio á nossa baia.
Nada me disse. Causou-me muito espanto vê-lo escovar e ensilhar o outro burro, meu companheiro, para levar a passeio o joãosinho e a Jenie.
D'ahi a poucos momentos Joãosinho entrou com cara triste e os olhos cheios de lagrimas.
- Neddy! disse elle, estou muito triste, muito triste mesmo! Vóvó não quer mais deixar-me passear com você. Diz que receia que você se torne máu outra vez e me derrube, como o fez ao pobre Norman. Oh, Neddy! querido Neddy! para que é que você fez aquillo?!
- Fiquei muito aborrecido, e desejava explicar a Joãosinho o meu odio ao gabola do Norman, com quem unicamente eu poderia ser máu. Com elle só e com mais ninguem! Mas o meu amiguinho não me saberia comprehender. O que fiz foi abaixar carinhosamente a cabeça, e tocar-lhe no hombro com o focinho.
- Cuidado, snr Joãosinho! gritou logo Roberto; não deixe esse bruto chegar-lhe perto; é capaz de o morder. Vamo-nos embora!
E agarrou Joãosinho pela mão, levando-o comsigo.
- Sim; bruto, máu, perverso! confirmou Eduardo, que, com os outros meninos, viera á porta da estrebaria.
É verdade que nem sempre Norman se porta como devia, mas Neddy não tinha o direito de tentar afoga-lo na lama. Eu de mim, não me metto mais com tal bruto!
- Nem eu! disse Ricardo.
- Nem eu! repetiam todos os outros.
Joãosinho ficou com a carinha muito triste.
Quando, porêm, Roberto o montou no outro burro e já se iam embora, elle ainda olhou para mim, dizendo com a sua vozinha doce:
- Pobre Neddy! Não se afflinja! Hei-de sempre ama-lo com d'antes, embora não mais possa monta-lo. Talvez, algum dia, você de novo fique manso. Não é verdade, Neddy?
Quando ouvi isto, veio-me a vontade de chorar. Era horrivel a minha situação. Assim, logo que Joãosinho partiu, escapei-me da estrebaria, e fugi para o pasto.
Ahi chegado, deitei-me sobre o capim, e comecei a meditar sobre todas as más acções que até então praticára: a queda da minha primeira ama, a qual lhe amassára o nariz; os logros pregados no lavrador, e a vingança contra elle exercida quando me castigou!
Pensei na vida feliz que tinha passado na minha actual residencia, na bondade com que todos sempre me trataram, no desastre de Norman.
Norman é verdade que matou a pobre Mimosa, mas não o fez de proposito, e o pae já o havia castigado!
Que direito, pois tinha eu de me deixar levar por sentimentos de vingança?
Pensei em Jenie e em Joãosinho, e no carinho que me dispensaram quando estive doente; e quando me lembrei que, devido á minha malvadez, elles nunca mais passeariam commigo, senti-me tão infeliz que não mais pude ficar quieto.
Agitava-me o coração um grande desespero. Levantei-me, então, e me puz a correr a galope por todos os lados, como si quizesse fugir de mim proprio! Quanto mais corria, porêm, mais infeliz me sentia, até que, afinal, bati com a cabeça num muro de pedra, e caí desmaiado ao chão.
Era já tarde, quando recobrei os sentidos, mas sem saber onde me achava.
Um pouco distante, á beira da estrada, avistei tres pessoas sentadas.
Estavam de costas para mim, e não podiam vêr-me.
Qual não foi a minha surpreza, porêm, quando nellas reconheci o dono do Muffles, com a mulher e o filho!
Approximei-me delles.
Pareciam infelizes e esfaimados.
Contaram-me, então, que o pobre Muffles fôra maltratado e pisado pelo povo no dia da feira; que, por isso, foram obrigados a deixa-lo no seu pasto. Elle andavam agora em busca de algum trabalho que os sustentasse, até Muffles poder representar novamente.
Ouvindo isto, senti ainda mais infeliz. Era eu, unicamente eu, o culpado de Muffles ser pisado, e de andar aquella pobre familia a soffrer fome por não ter dinheiro.
Acudiram-me, então, á memoria as palavras, que naquella manhã, me dissera o joãosinho, isto é, que esperava que algum dia eu de novo me tornasse bom.
- Pois tornar-me-ei desde já! pensei eu. Seguirei esta gente até a próxima aldeia,e ganharei algum dinheiro para ela, fazendo sortes como o Muffles.
Levantei-me, pois, resoluto, e os segui a trote até a porta de uma pequena hospedaria, onde pararam, pedindo ao dono que os abrigasse por aquella noite.
- Disseram, que dinheiro não tinham para paga-lo, mas estavam dispostos a trabalhar no que lhes ordenasse.
O hoteleiro sacudiu a cabeça, e lhes disse que tinha gente bastante na casa para todo o trabalho; que fossem mais adiante.
Justamente no momento em que, tristes e cabisbaixos, iam continuar o caminho, cheguei-me a trote, e saudei o dono da hospedaria; em seguida levantei-me nas patas de traz e comecei a dansar.
Executei, enfim, as sortes que Muffles costumava executar, e com tanta graça, que logo se reuniu muita gente par me admirar.
Quando julguei opportuno o momento de recolher as moedas, agarrei nos dentes o chapéo do homem, e o apresentei a todos os espectadores. Caíu nelle uma tal quantidade de moedas de cobre, que tive de despejar o conteúdo duas vezes no avental da mulher, que depois de contar o dinheiro, verificou achar-se possuidora de dois mil e quinhentos réis.
Trataram logo de ceiar, marido, mulher e filho, mandando que tambem me dessem um feixe de capim e me alojassem na estrebaria.
Na manhã seguinte fomos para uma pequena cidade, dali proxima, onde demos dois ou tres espectaculos em pontos diferentes.
Antes da hora de jantar, já tinha ganho para o homem vinte e tres mil réis.
Com isto julguei que ja tinha expiado a minha malvadez do dia da feira, e resolvi-me a voltar para a casa, a fim de mostrar ao meu amiguinho que já me havia regenerado. Acertei logo o caminho, e cheguei á casa á noite quando tudo estava quieto, provavelmente tomando chá.
Acabava apenas de chegar, quando vi um vagabundo a escalar o muro da horta com a intenção manifesta de roubar qualquer cousa do lado de dentro.
Segurei nos dentes o pé do gatuno, e puxei-o para baixo.
Elle poz-se a gritar por socorro, mas logo caíu, batendo com a cabeça na parede, e permanecendo sem sentido.
Neste momento, acudiu, correndo, outro vagabundo: dei-lhe um couce, que elle passou por mim, e o estendi logo ao lado do companheiro.
Mas elle tanto gritou que os criados saíram, afinal, correndo, para vêr o que acontecia.
Eu estava ainda perdo dos vagabundos, prompto para os escoucear, si tentassem levantar-se. Os criados os reconheceram, e os amarraram de mãos e pés, levando-os para dentro da casa até que a policia os viesse buscar.
Evitei assim que o jardim da minha ama, e, talvez, muitas outras casas, fossem arrombadas.
Todos apreciaram tanto a minha sagacidade, que foram de opinião que se me perdoasse a malvadez usada contra Norman, e que os meninos maiores pudessem montar-me durante os primeiros tempos.
Si eu me mostrasse bem manso, talvez Joãosinho e Jenie voltassem a me cavalgar como antigamente.
Para coroar a minha felicidade, soube, dahi a pouco dias, que Norman estava quasi bom, e que não me conserva rancor. Que lhe attribuira a anormalidade do meu procedimento, a um sapo, ou a qualquer outro animal, que me houvessem assustado, fazendo-me disparar!
Como me senti envergonhado ao ouvir isto!
Demaís, Norman parecia-me, agora, um menino muito melhor e mais generoso do que antes imaginára. Em todo caso elle não era vingativo.
CONCLUSÃO
Daquele dia em diante passei uma vida feliz.
A minha bondosa ama disse que nunca me mandaria embora, e que nada me haveria de faltar; que eu ficaria com a familia emquanto vivesse, e que cuidariam de mim o mais possivel.
Joãosinho que sempre me amára, mesmo quando fui máu, tornou-se o meu verdadeiro dono.
Todos os verões elle vinha de Londres fazer uma longa visita a avó, até ter dez annos.
Depois elle, Jenie, o pae e a mãe, mudaram-se para a Autralia.
Fiquei, então, pertencendo a Henrique, porque Henrique, mais do que os outros netos, passava mais tempo no campo com a avó.
Henrique não é tão meu amigo como Joãosinho; mas é bondoso, e nunca me trata mal; cuida sempre bem de mim, e chama-me seu velho Neddy. Estou agora envelhecendo, e, talvez, não viva muito tempo mais.
Por isso comecei, no inverno passado, a escrever a historia da minha vida e das minhas aventuras, porque quero que nos tratem a nós, os burros, com mais bondade, e que tambem lembrem de que muitas vezes somos mais sensatos, oh! muito mais, do que alguns desses sêres que se dizem humanos.
Condessa de Ségur
Vinha chegando o inverno; pensei quer tempo de procurar uma morada confortavel.
Atravessei, pois, a floresta a trote, e sai do outro lado.
Passados alguns dias, cheguei a uma aldeia, de que nunca ouvira falar.
Senti que ahi estaria livre da perseguição.
Um pouco afastada da aldeia, havia uma casinha solitaria, no meio de um jardim. Uma boa mulher estava sentada á porta, bordando.
Parecia bondosa e triste. Cheguei-me para ella, e puz a cabeça por cima do seu hombro.
A bôa mulher assustou-se, e deu um grito e um pulo.
Não me mexi; antes, levantei para ella um olhar manso e supplicante.
- Pobresinho! disse, afinal; não me parece ser máu. Si não pertencesses a ninguem, gostaria bem que tomasses o logar do meu pobre Pêlo-de-Rato, que morreu ha poucos dias de velhice. Assim poderia ainda ganhar a vida, levando de novo os meus legumes ao mercado.
- Mas, acrescentou ella, com um suspiro: com certeza tens dono em alguma parte.
- Avósinha, com quem está você falando? perguntou uma voz agradavel de dento de casa; e um menino bonito e sympatico saíu á porta. Tinha seis ou sete annos; estava vestido pobremente, mas muito limpinho. Olhou para mim com um ar de admiração e ao mesmo tempo de medo.
- Avósinha, posso fazer-lhe uma festa?
- Sem duvida, meu querido Jorge! disse a velha; mas toma cuidado que elle não te morda!
O menino estendeu a mão, mas era tão pequeno que tinha de se alçar na ponta dos pés para me alcançar o lombo. Não me mexi, de medo de assusta-lo; só virei a cabeça e lambi-lhe a mão.
- Oh! avósinha! Avósinha, olha! que joia de burro! elle me lambeu a mão!
- É extranho, disse a avó de Jorge, que esteja aqui sósinho! Vá á aldeia, meu querido, e pergunte si alguem perdeu um burro. Talvez que o dono esteja afflicto á sua procura.
Jorge partiu correndo, e eu o segui a trote.
Quando elle me viu chegar e parar perto de um monte de terra, ao lado da estrada, trepou-me ás costas e ordenou:
- Anda!
Parti a galope; Jorge ficou encantado.
Ao chegarmos á hospedaria da aldeia, Jorge gritou: pára!
Parei immediatamente.
- Que quer, menino? Perguntou o estalajadeiro.
- Faça o favor de me dizer si conhece o dono deste burro.
O estalajadeiro veio á porta e me examinou.
- Não, menino, não é meu, e nem de ninguem que eu conheça.
Jorge atravessou toda a aldeia, fazendo a mesma pergunta, mas não encontrou ninguem que me conhecesse.
Voltámos para a bôa velhinha, que achámos ainda senta á porta, trabalhando.
- Então, não achaste o dono, meu querido? Muito bem, nós o guardaremos, até que alguem o reclame. Elle não póde passar a noite toda no campo. Leva-o para a estrabaria do pobre Pêlo-de- Rato, e dá-lhe um pouco de feno e um balde d'água.
Na manhã seguinte Jorge veio buscar-me, e deu-me o almoço.
Poz-me depois um cabresto, e conduziu-me á porta da casa. A avósinha lançou-me ás costas uma leve cangalha e montou-lhe em cima.
Jorge trouxe-lhe, então, um cesto de legumes, que ella segurou ao collo, e partimos para o mercado.
Ninguem, tambem, na cidade me conhecia, e voltei alegremente para a minha nova morada.
Vivi lá durante quatro annos, e fui muito feliz
Trabalhei bem e nunca fiz mal a ninguem. Amava minha velha ama e o meu amosinho. Nunca me batiam, nem me cançavam demasiado, e davam-me o melhor alimento que podiam.
Nós, os burros, não somos gulosos: no verão bastam-nos as folhas de legumes e das plantas que os cavallos e as vaccas não querem comer; e, no inverno, feno, cascas de batata, cenouras e nabos.
A minha tranquilidade, porém, acabou-se. O pae de Jorge era soldado, e um dia voltou para casa, trazendo, com algum dinheiro, a sua baixa do serviço militar. Comprou, pois, uma casa na cidade. A mãe e filho foram morar com elle, e venderam-me a um lavrador vizinho.
CAPITULO III
Meu novo amo não era homem máu; tinha, porêm, o costume, que eu considero vil, de obrigar a todo mundo a trabalhar muito.
Elle costumava arreiar-me a uma carrocinha, obrigando-me a carregar terra, estrume, lenha e muitas outras coisas. Comecei a ficar preguiçoso; não gostava de puxar carroças. Não era que me obrigasse a puxar cargas pesadas demais, ou que me batesse; mas deixava-me sem comer nem beber desde manhã cedo até tres ou quatro horas da tarde.
Ás vezes levava a carrocinha cheia de verdura até o mercado.
Tudo isso me desesperava, e um dia resolvi pregar-lhe uma peça.
Tinha notado que no pasto havia um fosso bem fundo e cheio de urtigas e amoreiras.
Um dia, disse commigo: "Escondo-me naquelle fosso; e, quando vierem buscar-me, o burro terá desapparecido".
E dito e feito.
Logo que vi a gente arrumando a carroça, fui me escapando para o lado do pasto, e deitei-me com cuidado no fosso, escondendo-me entre os arbustos.
D'ahi a pouco ouvi um dos rapazes a chamar-me, e a procurar-me por toda a parte.
Logo depois ouvi o proprio lavrador a dizer:
- Com certeza passou pela cerca. Mas, por onde poderia passar? Não vejo buraco nenhum. Ah! já sei, alguem deixou a porteira aberta. Quem seria? Rapazes, procurem nos campos, que elle não póde estar longe. E, andem depressa, pois está tardando, e não chegaremos a tempo.
Toda a gente da herdade saíu á minha procura.
O sol estava muito quente.
Depois de me procurarem por toda a parte, os pobres empregados voltaram suando e esbaforidos.
O lavrador disse, então, uma porção de palavras feias; declarou que provavelmente alguem me havia roubado, e que eu era muito burro por me deixar roubar.
Arreiou, então, um dos cavallos á carroça e partiu para o mercado já muito tarde, e de muito mau humor.
Logo que vi tudo socegado, dei um galope até a outra extremidade do pasto, para ninguem suspeitar onde estivesse escondido, e comecei a zurrar: "Hi-án! Hi-án!" com toda a força dos pulmões.
Ouvindo-me zurrar, toda a gente da herdade saíu correndo.
"Olá! lá está o burro!" exclamou o vaqueiro.
- Onde seria que elle se metteu todo este tempo? exclamou a mulher do lavrador.
- Como é que entrou outra vez? perguntou o carroceiro.
Eu estava tão contente de ter escapado de ir ao mercado, que me cheguei para elles pulando. Ficaram também contentes de me vêr, que me fizeram muita festa, e me chamaram burro bom e astucioso, por me haver safado dos ladrões.
Senti-me envergonhado; pois não era festa que merecia, mas sim umas bôas pauladas.
Deixaram-me passar todo o dia no pasto; mas a minha conciencia, que me censurava o acto praticado, não me deixou tranquillo.
O lavrador chegou do mercado, e ficou muito surprehendido de me tornar a vêr.
No dia seguinte, elle deu uma volta pelo pasto, e tapou todos os vãos da cerca.
A semana passou sem maior novidades, ate chegar outra vez o dia da feira.
Escondi-me, então, como já o tinha feito.
A gente da herdade não sabia o que pensar e, imaginaram que os ladrões, a quem attribuiam o meu desapparecimento, eram muito habeis.
- Desta vez, disse o lavrador, o burro está bem perdido para nós!
Elle, então, como da outra vez, arreiou um dos cavallos, e tocou-se para o mercado,
Quando tudo ficou socegado, saí do fosso; mas julguei prudente não dizer hi-án! para avisar da minha presença.
Quando me acharam, não mais me fizeram festas; e manifestaram tão pouca alegria, que comecei a pensar que tinham desconfiado de alguma cousa! Mas não me importei, e disse comigo:
- Ah! Sim, meus amigos! Podem considerar-se muito astutos si me apanharem; mas eu é que não pretendo dar-lhes este gostinho!
Quando chegou o dia do mercado meti-me pela terceira vez no fosso.
Estava apenas escondido entre os cardes e amoreiras, quando ouvi o latir do grande cão de guarda, e a voz do lavrador a gritar:
- Aqui, Rover, Rover! Procura! Mette-lhe os dentes!
Num momento Rover pulou para dentro do meu esconderijo, e começou a morder-me as patas de um modo muito desagradavel.
Corri para a cerca, e quiz passar atravéz della, mas em vão.
- Bom Rover, bonito cão! exclamou o lavrador, e atirou-me um laço, amarrando-me a um poste, de onde ouvi dizer que um dos meninos da herdade estivera vigiando o pasto de um logar em que eu o não podia vêr, e que contára tudo.
Traidor!
Odiei este menino desde então! Depois disso, fui tratado com muito mais severidade,
Fecharam-me na estrebaria; mas eu aprendi a puxar ferrolhos e a levantar trincos com os dentes. Saí da prisão!
- Oh! eis aquelle damnado burro outra vez!
O lavrador resmungava e me surrava.
Fiquei cada vez peior.
Comparava a minha vida desgraçada com a vida feliz que levava anteriormente sob o mesmo amo.
Mas, em vez de corrigir-me, tornei-me peior e mais obstinado todos os dias.
Um dia entrei na cosinha e comi todas as alfaces; de outra vez derrubei o menino, que contára onde eu me havia escondido; de outra vez ainda, bebi uma tijella de nata que guardavam para bater manteiga.
Pisei nas galinhas; mordi os porcos: fiz o diabo! A ama desanimada commigo, disse finalmente que não podia aguentar mais tempo, e pediu ao marido que me vendesse na primeira feira.
Assim quando chegou o dia da feita, meu amo levou-me comsigo.
Tive vontade de os morder a todos, antes de me ir embora! Tive medo, porêm, que dissessem ao meu novo amo que eu era muito máu, e não fiz; contentei-me de ser o mais malcriado possivel e de, ao partir, lhes virar as costas com desprezo.
O lavrador vendeu-me a uma familia onde havia uma menina aleijada, que eu devia levar a passear todos os dias.
Fiquei lá pouco tempo, porque a menina morreu, e os seus paes, que não me estimavam, me soltaram para ir onde quizesse e para viver como pudesse.
CAPITULO IV
Passei todo esse inverno sem ter quem de mim cuidasse.
Andei pela floresta, mal encontrando o bastante para comer e beber e não morrer de fome e sêde.
Tive bastante tempo para reflectir nas minhas malvadezas, nos meus despeitos e nas minhas vinganças, para me resolver a seguir outro modo de vida mais honesto.
Quando chegou a primavéra, fui um dia até uma aldeia, á beira da floresta, e fiquei surprehendido de vêr um grande ajuntamento do povo!
Pareceu-me uma procissão; todos vestiam a roupa domingueira.
E, o que era ainda muito mais extranho, achavam-se ali todos os burros da vizinhança! Eram reluzentes e gordos; suas cabeças estavam enfeitadas de flôres e de folhas, e não traziam no lombo nem cavalleiros, nem cangalhas.
Aproximei-me a trote para vêr o que aquillo significava, quando, de repente, um dos meninos me viu e gritou:
- Oh, olhem ali que lindo burro!
- Realmente! disse outro: e como está gordo e bem alimentado! E romperam em gargalhadas,
- Talvez tambem queira tomar parte da corrida, disse um terceiro, mas elle não ganhará o premio! Aposto!
Estes dichotes dos lapuzes aborreceram-me muito; mas pensei que bem poderia tomar parte na corrida, e por isso escutei ainda.
- Onde vão correr? perguntou uma velha que acabava de chegar.
- No prado, ao lado do moinho, disse um homem chamado André.
- Quantos burros vão correr? perguntou a velha.
- Dezesseis, Mãe Evans, e aquele que chegar primeiro ganhará um relógio de prata e uma bolsa com dinheiro.
- Ai de mim! disse a Mãe Evans, eu bem quizera ter um burro! E, então, um relogio! Nunca tive bastante dinheiro para comprar um.
Sympathisei com esta velha. Gabava-me, e com razão, da ligeireza das minhas pernas.
Tanto tempo estive na floresta que não estava nem muito pesado, nem tão gordo, como alguns dos burros enfeitados. Resolvi, pois, entrar na corrida.
Cheguei-me para junto dos outros, e tomei logar entre elles; depois, afim de attrair a attenção, abri a boca e soltei um vigoroso zurro.
- Olá! Acaba logo com isso! gritou um homem chamado Chico. Vai-te embora, burro, com a tua musica!
- Não pódes correr, feio bicharoco!
Fiquei calado, mas não me mexi.
Alguns riram; outros começaram a zangar-se, quando a velha Mãe Evans disse:
- Bem, ficarei com elle. Tomo-o ao meu serviço desde este momento. Elle irá correr para mim.
- Como quizer, disse o Chico, mas para elle tomar parte na corrida, é preciso que você ponha dois mil réis na bolsa que o Juiz tem na mão.
- Prompto! disse a Mãe Evans; e dirigiu-se onde estava o Juiz, a quem pagou a sua quota.
- Perfeitamente, disse o Juiz; inscreve, Ricardo, o nome de Madame Evans.
O escrivão inscreveu o nome da minha nova ama. Estavamos todos em linha no prado. O Juiz gritou: um, dois, tres... largai!
Os meninos que nos seguravam, soltaram-nos, e partimos a todo galope, emquanto a multidão corria ao nosso lado gritando.
Não tinhamos ainda galopado cem metros e já eu ia facilmente na frente de todos.
Tive, mesmo, tempo de virar o focinho e ver como estavam furiosos os meus competidores! Tão furiosos iam, por não me poderem alcançar, que tropeçavam uns nos outros, caindo alguns no chão.
O burro do Chico chegou a alcançar-me duas vezes, mas consegui passa-lo de novo.
Afinal elle agarrou-me a cauda entre os dentes. Senti uma dôr horrivel, que só serviu para me fazer correr mais depressa. Elle largou-me, afinal, a cauda, e eu voei como si tivesse azas. Cheguei ao poste do vencedor primeiro que todos, no meio dos applausos de todos aquelles que não tinham burros no pareo.
O Juiz já se achava sentado a uma mesa para entregar os premios, quando a Mãe Evans, que estava quasi louca de alegria me levou á sua presença.
- Aqui tem o premio, minha bôa mulher, disse o Juiz, e estendeu o relogio e a bolsa à velha.
- Alto, alto! snr. Juiz, não é justo!gritavam Chico e André. Aquelle bicharoco não pertence realmente á Mãe Evans. É um burro sem dono! Tanto é della como é nosso! Afóra elle, foram os nossos que chegaram em primeiro logar. O relogio, pois e o dinheiro nos pertencem.
- A Senhora Evans não pagou os dois mil réis de sua inscripção? perguntou o Juiz.
- Pagou, sim, senhor; mas...
- Alguem protestou na ocasião? perguntou o Juiz.
- Não senhor, mas...
- Fizeram alguma objecção quando os burros iam partir?
- Não senhor, mas...
- Pois, muito bem. É de toda a justiça que Madame Evans receba o relógio e o dinheiro.
- Mas snr, Juiz, não é justo! O senhor...
Quando ouvi isto, abaixei a cabeça para a mesa, e tomei nos dentes o relogio e o dinheiro, depondo-os nas mãos da Mãe Evans.
Esta acção intelligente provocou ruidosas gargalhadas e attraíu-me uma chuva de applausos.
- Ora, ahi está! disse o Juiz, o burro decidiu a favor da Mãe Evans; e accrescentou, com um sorriso, olhando maliciosamente para o Chico e o André: creio que dos presentes elle não foi o mais burro.
- Bravo, snr. Juiz! tem toda a razão! resoou de todos os lados. E todos riram do Chico e do André, que se retiraram muito zangados. E, eu?! Julga você que eu estivesse satisfeito? De modo nenhum. Meu orgulho achava-se ferido. O Juiz fôra muito grosseiro commigo; tinha equiparado aqueles homens, isto é, aquelles animaes estupidos, com um burro intelligente e sensato como eu era! Foi demais!
Recusei, pois, ficar num logar em que recebi tamanho insulto, e voltei-lhe a cauda e fugi a trote largo daquelle povo nojento!
CAPITULO V
Meia hora depois, parei. Achava-me num prado. Doía-me ainda a cauda.
Meditava si os burros não são muito melhores do que os sêres humanos, quando uma mãosinha macia me tocou, e uma vozinha doce disse:
- Ai, pobre burro! Como esta magro! Foi, talvez, maltratado. Anda commigo á casa da minha avósinha. Ella cuidará de ti!
Virei a cabeça. Era um bonito menino de cinco annos mais ou menos, acompanhado da irmãsinha, que tinha só tres anos, e uma governante.
- Que é que esta dizendo, joãosinho? Perguntou a governante.
- Estou-lhe dizendo para vir comnosco, para junto da avósinha.
- Sim, sim! gritou a menina, que se chamava Jenie; quero montar a cavallo nelle. Ponha-me em cima do burrinho!
A governante fez-lhe a vontade, e o Joãosinho me quiz puxar; mas, como não tinha redea, fez-me caricias com a mão, e me cochichou no ouvido.
- Anda, Neddy! Anda, querido Neddy!
Fiquei tão contente da confiança que em mim depositára o pequerrucho, que o fui seguido, tocando-lhe de vez em quando a mão com o focinho.
- Olha, olha é manso! exclamou o Joãosinho.
- Não se fie muito da sua mansidão, meu querido! disse a governante; elle faz assim porque está a sentir o cheiro de pão que você tem no bolso.
Magoei-me tento com esta injusta observação da governante, que virei a cabeça para o outro lado, durante todo o resto do caminho.
Quando chegámmos á casa da avó, deixaram-me á porta e entraram correndo.
D'ahi a poucos momentos voltaram, puxando uma sympathica e bonita velha de cabellos brancos.
- Olha, vóvó! Que lindeza de burro! Elle não poderá ficar comnosco?
- Deixem-me vê-lo mais de perto, meus queridos, disse a velha.
Chegou-se para mim, affagou-me, apalpou-me as orelhas, e poz a mão na minha boca.
Não me mexi, tendo o cuidado de a não morder.
- Realmente, parece muito manso! disse a velha. Emilia, accrescentou, dirigindo-se á governante, diga ao cocheiro que indague de quem é este burro, e si ninguem o reclamar ficaremos com elle. Pobre animal! Como esta magro! Joãosinho vá chamar Roberto; quero que elle o leve á estrebaria, e lhe dê o que comer e beber.
Veio o moço de estrebaria, e levou-me. Seguiram-me joãosinho e Jenie.
Tive por companheiro de estrebaria dois cavallos e um outro burro.
Roberto preparou-me uma bôa cama de palha, e depois trouxe-me uma medida de aveia.
- Roberto, dê-lhe mais! gritou Joãosinho, o que lhe deu é tão pouco! Emilia diz que elle correu na corrida da aldeia. Deve estar tão cançado e morto de fome. Dê-lhe mais! ande!
- Mas, snr. Joãosinho, disse Roberto, si lhe dermos muita aveia, elle ficará esperto demais, e, então, nem o senhor, nem a menina Jenie poderão monta-lo.
- Elle é um burrinho tão manso, que tenho certeza de que andará delicadamente conosco. Anda, Roberto, dê-lhe mais um pouco!
Roberto deu-me mais uma medida de aveia, algum feno e um balde de agua. Ceei que foi um gosto; depois, deitei-me na minha palha, e dormi como um rei.
No dia seguinte o meu trabalho foi levar as crianças para passear uma hora.
Quando voltámos, Joãosinho com as suas proprias mãos, trouxe-me a aveia, e, apezar de Roberto dizer que o não fizesse, deu-me tanto, tanto que chegaria para tres burros de meu tamanho. Ingeri tudo, e claro está que fiquei muito encantado de comer tanta cousa bôa.
No terceiro dia senti-me doente; doía-me a cabeça. É que eu apanhára uma indigestão. Assaltára-me uma íntensa febre. Não podia nem comer aveia, nem feno. Quando Joãosinho me veio vêr, estava ainda deitado na palha, sem poder levantar-me.
- Que é isto Neddy? Ainda está na Cama! gritou Joãosinho. Levante-se Neddy, que já é hora de almoçar. Olhe, cá está a sua aveia!
Tentei levanta a cabeça, que me caíu pesadamente na palha.
- Está doente! Neddy está doente! gritou Joãosinho assustado. Roberto, vem cá depressa, depressa! Neddy está muito doente.
- Que ha? Perguntou Roberto entrando na estrebaria. Ainda esta manhã enchi a mangedoura! Ah, accrescentou elle, olhando para o feno, que estava intacto; elle tem alguma cousa.
Apapou-me as orelhas; estavam muito quentes e eu todo anceava.
Fez uma cara séria.
- Que é? Que é? gritou Joãosinho quasi chorando.
- Está com febre, menino, por haver comido demais. Eu bem lhe disse! Para que lhe deu toda aquella aveia? Agora o de que elle precisa é um veterinario.
- Que é um veterinario? perguntou Joãosinho ainda mais assustado.
- Veterinario é o medico dos animaes, respondeu o Roberto. Ora ahi está! Este pobre burro passou mal todo o inverno, como é facil perceber pela sua magreza e pelo estado de seu pêlo. Depois, aqueceu-se muito na corrida. Devia comer capim fresco e pouca aveia; mas o senhor deu-lhe tanta que elle ficou empanzinado!
- Pobre Neddy! Pobre Neddy! Vai com certeza, morrer, e por minha culpa.
- Calma, calma, snr. Joãosinho, elle não morrerá desta vez. É preciso sangra-lo, e depois solta-lo no pasto.
Roberto mandou chamar o veterinario, e quando ele chegou, pediu ao menino que se retirasse.
Lancetaram-me, furando uma veia do meu pescoço.
O sangue logo esguichou, e comecei a sentir-me melhor. A cabeça já me não pesava tanto. Pude levantar-me, emfim. Roberto estancou-me então o sangue e levou-me para um bello e fresco pasto, onde me deixou em liberdade.
Bom, bom, eu não estava, mas achava-me mais disposto, e durante uma semana apenas trabalhei com os dentes, comendo o tenro capim do pasto.
João e Jenie desvelaram-se por mim; vinham vêr-me duas ou tres vezes por dia.
Cortavam o capim e punham-no em minha boca, para que eu não precisasse abaixar a cabeça. Traziam-me alfaces da horta, folhas de repolho e cenouras; e todas as tardes conduziam-me á estrebaria, enchendo a minha mangedoura de cousas appetitosas, como cascas de batatas e sal.
Uma noite Joãosinho quiz dar-me o seu travesseiro, porque achava que a minha cabeça me ficava muito baixa quando dormia; e Jenie lembrou-se de cobrir-me com a sua colcha para me aquecer. Um outro dia enrolaram-me os pés com algodão em rama para que eu não viesse a sentir frio.
Como desejava eu mostrar-lhes a minha gratidão por tanta bondade! Aí, eu tudo comprehendia, mas minha linguaguem elles não poderiam entender!
Fiquei, finalmente, bom, e com Joãosinho, Jenie, e uns seus primos, que vieram passar algum tempo com a avó, passei um verão feliz.
CAPITULO VI
Quasi ao terminar o verão reuniu-se muita gente em casa da minha ama.
Um dia resolveram fazer uma caçada ás perdizes. Dois dos meninos maiores, um de treze annos, outro de quatorze, chamados respectivamente Ricardo e Eduardo, obtiveram licença para tomar parte da caçada. Com elles também iriam um vizinho com um filho de quinze annos, chamado Norman.
Os primeiros a levantar-se foram Eduardo e Ricardo, que andavam de um para outro lado, com a espingarda debaixo do braço e a bolsa a tiracollo, falando da qualidade da caça que haviam de abater.
- Mas, Eduardo, dizia Ricardo, quando estiverem cheias as nossas bolsas, onde poremos o excesso da caça que havemos de matar?
- Pensava nisso justamente! respondeu-lhe Eduardo. Ah! Já sei: levaremos o Neddy com as cestas.
Não gostei do alvitre lembrado, porque sabia muito bem que aquelles rapazes, caçadores inexperientes, haviam de atirar a tudo que avistassem, e não seria difícil que me acertassem, talvez, alguma bala destinada a qualquer perdiz.
Mas não havia remedio! Quando todos os caçadores se reuniram em frente da casa, já lá estava eu prompto, arreiado pelos meninos.
As perdizes levantaram-se aos bandos.
Eu fiquei prudentemente na retaguarda. Os caçadores postaram-se em linha; e ao longe só se ouviam tiros e mais tiros. Os cães fitavam as orelhas, e, quando viam caír a caça, iam rapidos busca-la. Não tirei os olhos de cima dos dois fanfarrões, que davam mais tiros do que os paes, sem nunca, porêm, acertar, nem quando todos os tres miravam a mesma perdiz.
Ao fim de duas horas as bolsas dos homens estavam cheias; as dos meninos vazias que causavam dó!
- Que é isto! exclamou um dos paes, ao passar junto a mim, quando se dirigiam para a herdade vizinha onde iam jantar. Que é isto! As cestas estão vazias! E deu uma risada.
Ricardo, Eduardo e Norman ficaram muito vermelhos, mas nada disseram, e d'ahi a pouco estavam todos sentados debaixo de uma arvore, em torno de uma cesta de bons petiscos: um pastel de gallinha, presunto, ovos cosidos, queijos e bolos. Os rapazes estavam com um appetite a toda a prova, e comiam vorazmente de modo a assustar a gente que passava.
- Então, rapazes, disse o pae de Norman, não se póde dizer que vocês fossem muito felizes! Pelo menos o Neddy está tão fresco, que parece não haver carregado grande peso.
- Não, disse Norman, é que nós não tinhamos cães como os senhores, para irem busca-las!
- Mataram algumas, então? Porque não foram vocês mesmo apanha-las?
- Impossível! Não vimos onde ellas caíram!
Ouvindo isto todos os homens deram uma grande gargalhada, e os meninos ficaram vermelhos de raiva.
- Pois, meninos, disse o pae de Ricardo, nós ficaremos aqui a descançar uma hora, e vocês poderão ir com um dos guardas e todos os cães, para vêr si são mais felizes desta vez; achando as perdizes, que matem.
- Obrigado, meu pae. Agora, sim, é que vai ser grande a matança! Vamos Eduardo; Vamos Norman.
Os paes recommendaram os guardas para se conservassem perto dos meninos, afim de evitar qualquer imprudencia.
Partiram com os cães, eu segui um pouco atraz, como sempre.
Appareceram as perdizes em quantidade, como de manhã; os cães permaneciam de atalaia. Não tiveram, porém, trabalho: nenhuma perdiz caiu morta!
Norman impacientou-se afinal, por errar todos os tiros; e vendo um dos cães parar e fitar as orelhas, julgou que elle estava amarrando uma perdiz. Fez pontaria e atirou. Ouviu-se um ganido de dôr! O cão deu um pulo para o ar e caíu morto.
- Idiota, resmungou o guarda, e correu para o cão. O senhor matou o nosso melhor cão! Bonito fim de caçada!
Norman ficou pallido de susto. Ricardo e Eduardo sentiam tremer-lhes as pernas.
O guarda dominou sua raiva, e ficou olhando o pobre cão.
Approximei-me para vêr qual que era a infeliz victima de Norman.
Imagine o meu horror, quando reconheci a minha antiga amiguinha Mimosa! Eu a conhecera ainda pequenina, quando ella pertencia ao negociante de cães do mercado, onde eu levava outróra os legumes.
Pobre Mimosa! Quem havia de pensar que seria este o seu fim! Que menino desalmado e vaidoso!
Dirigimo-nos, muito tristes, para a herdade. O guarda poz o cadaver da Mimosa em uma das cesta, e caminhou ao meu lado proferindo ameaças; os meninos seguiram-se cabisbaixos. Minha unica vigança era a reprehensão severa que haviam de receber, e que bem mereciam.
Os caçadores estavam ainda sentados debaixo da arvore, e ficaram admirados de nos vêr chegar.
Percebendo que uma das cestas pendia pesadamente do meu lombo, levantara-se para vêr o que ella continha. Os meninos ficaram para traz, e o guarda adiantou-se.
- Que é que mataram? perguntou um dos caçadores; foi uma ovelha ou um carneiro?
- Nem uma, nem outra cousa, senhor, respondeu o guarda; foi o nosso melhor cão, a Mimosa, que este moço matou, julgando que era uma perdiz.
- Mimosa?! É verdade? Ora esta! Eis ahi o resultado de se trazerem fedelhos a caçar.
- Venha cá, Norman, disse o pae; veja onde o levou a sua vaidade ridicula e idiota! Diga adeus aos seus amigos, e vá immediatamente para casa! Deixe a espingarda no meu quaro, e não pegue mais nella emquanto não aprender a ser mais razoavel e um pouco mais modesto.
- Mas, meu pae, disse Norman, querendo fazer crer que não era tão grave a sua falta; todo o mundo sabe que mesmo os melhores caçadores matam ás vezes por engano os cães!
O pae olhou para elle um momento; depois, voltando-se para os outros com aspecto tristonho, disse:
- Senhores, peço-vos que me desculpeis o haver trazido commigo um menino tão pouco educado. Nunca suppuz que elle fosse capaz de tal impertinencia.
Voltou-se de novo para o filho, e disse severamente.
- Acaba de ouvir a minha ordem; retire-se.
Norman abaixou a cabeça e partiu envergonhado.
- Vocês vêem, meus filhos, disse o pae de Ricardo e Eduardo, a quanto leva a vaidade! Isto podia ter tambem acontecido a qualquer de vocês, tal a certeza que tinham de que nada era mais facil do que caçar. Todos tres portaram-se de uma maneira censuravel durante toda a manhã; desprezaram nosso conselho e a nossa experiencia, e terminaram por ser causa da morte da Mimosa! Evidenciaram, assim, que não têm ainda a idade bastante para caçar. Acho, pois, prudente que vocês ambos voltem tambem para os divertimentos proprios de meninos.
Ricardo e Eduardo abaixaram as cabeças, e sem dizer palavra tambem se retiraram para casa.
Depois do chá, os meninos enterraram no jardim a minha pobre amiga.
CAPITULO VII
Alguns dias depois houve uma feira na aldeia proxima, e lá foram todos os netos e todas as netas da minha ama.
Eramos, ao todo, uns quinze ou dezéseis, contando commigo.
Quando chegámos, só se falava de um burro maravilhoso, muito intelligente, que ia representar d'ahi a dez minutos, do outro lado do campo, onde a feira tinha logar.
- Meu pae, nós tambem queremos vê-lo, disse Eduardo. O senhor nos dá licença?
- Certamente, meu filho, e eu também irei com vocês; mas desde já garanto que esse burro não excede ao Neddy em inteligencia e sagacidade.
Gostei de ouvir a bôa opinião que de mim fazia o cavalheiro, e caminhei orgulhoso á frente da procissão.
A mãe de joãosinho desceu-o e ao Henrique das minhas costas, po-los num banco perto da entrada do circo, que já estava cheio de gente.
A mim deixaram-me do lado de fóra, logo atraz dos meus dois amiguinhos.
D'ahi a alguns minutos começava o espetaculo. Appareceu o dono do celebrado burro conduzindo-o pela redea.
Era um pobre e triste animal, que parecia morto de fome, tão magro estava.
- Joãosinho, disse o pequeno Henrique ao primo, em voz alta bastante para que eu o ouvisse: Aquelle burro não me parece muito habil. Tenho certeza que é muito menos intelligente do que o nosso querido Neddy.
Eu também era da sua opinião; mas fiquei satisfeito de ouvir Henrique manifestar-se assim.
Disse, então, commigo: - Todos hão de verifica-lo daqui a pouco, ou não mais me chamarei Neddy. Deixei o logar onde estava e tomei uma posição no caminho deixado para o povo entrar.
- Senhoras e senhores! começou o dono do burro, tenho a honra de vos apresentar o snr. Muffles, o maravilhoso burro artista. Este animalzinho, meus senhores, não é tão burro como parece. Sabe muito, muito mais do que alguns dos senhores que ahi estão. É um burro sem igual. Vamos, Muffles, mostre á nobre assistencia o que sabes fazer. Faze uma saudação, e mostra a estas senhoras e a estes senhores que desde pequeno foste bem educado. O burro adiantou tres passos, e abaixou a cabeça de um modo melancolico.
Fiquei indignado com o homem, e logo percebi que o pobre Muffles fôra ensinado a chicote.
Resolvi, pois, vingar-me daquelle sujeito, antes de acabar o espectaculo.
- Agora, Muffles, toma este ramalhete, e entrega-o á senhora mais bonita que se acha presente.
Muffles tomou o ramalhete nos dentes, e andou tristemente em torno do circo. Parando em frente de uma mulher gorda e feia, deixou-o cahir-lhe no collo
Eu estava ao seu lado. Vi que ella escondia na mão um pedaço de assucar.
- Velhaco! pensei eu; é naturalmente a mulher do emprezario. Fiquei tão enojado do que via que, antes de alguem m'o impedir, pulei para dentro do circo.
Tirei com os dentes o ramalhete do collo da mulher gorda, e fui a trote colloca-lo aos pés da menina Jenie.
A multidão applaudiu-me enthusiasticamente.
Perguntavam, uns aos outros, quem eu era.
- Tão intelligente! exclamavam.
O dono do Muffles, porêm, não parecia muito satisfeito. Quanto ao Muffles, nem me prestou a attenção. Comecei a pensar que elle devia ser, na realidade, um animal muito estupido, o que é, aliás, não muito commum entre nós, os burros.
Depois de se acalmar a assistencia, o dono do circo disse:
- Agora, Muffles, mostra-nos a pessoa mais tola aqui presente! E assim dizendo deu-lhe uma grande carapuça de papel colorido, adornada de pequeninas rosas.
Muffles tomou a carapuça entre os dentes, e avançou sem hesitar para um rapaz gordo e de olhar amortizado, com cara de porco, e lh'a poz na cabeça. O rapaz gordo era tão parecido com a mulher gorda, que logo se via ser seu filho, isto é, filho do dono do circo, e, portanto, seu comparsa.
- Bom! disse commigo, chegou agora a minha vez! E num pulo arranquei a carapuça da cabeça do tal menino, e puz-me a perseguir o dono do circo, em redor do picadeiro.
A multidão ria a bom rir, e batia palmas sem cessar.
De repente o homem tropeçou e caiu com um joelho no chão; aproveitei o momento e enfiei-lhe na cabeça até os olhos a carapuça!
O homem ficou como uma féra, e começou a pular e a querer arrancar a carapuça.
Levantei-me, então, nas patas de traz, e puz-me a dançar em torno delle.
O auditorio quasi morria de dar gargalhadas!
- Muito bem, burro! Bravo, burro! Você é que é o verdadeiro burro artista! gritavam de todos os lados.
Depois disso, a confusão foi medonha!
Centenas de pessoas saltaram para o picadeiro, e puzeram-se a fazer-me festa.
Tive até medo que me reduzissem a pedaços. O povo de nossa aldeia, que me conhecia, sentia-se orgulhoso de mim, e, no seu enthusiasmo, contava historias maravilhosas e muito exageradas da minha intelligencia e das minhas aventuras. Inventaram que uma vez, num incendio, eu sósinho tinha feito funccionar as bombas; que, depois, subi, por uma escada, ao terceiro andar; que arrombei a janella do quarto de minha ama; que a agarrei pela camisa, e a salvei do incendio, pulando com ella do tecto ao chão.
Que de outra vez, sósinho, eu dei cabo de cincoenta ladrões, estrangulando-os um após outro com os dente, quando dormiam; que fui tão habil, que nenhum delles teve tempo de chamar os outros; que, depois, entrei na caverna onde viviam, e libertei cento e cincoenta prisioneiros que elles lá guardavam para matar e comer.
Que de outra vez, ainda, eu tomára parte em um corrida, em que venci todos os cavallos mais velozes da região, fazendo setenta e cinco leguas em cinco horas.
A multidão ávida por ouvir estas historias phantasticas, agglomerou-se tanto que a policia teve de intervir para a dispersar, pois algumas pessoas, por falta de ar, já haviam mesmo desmaiado.
Imaginai, pois, como foi dificil dali safar-me; foi preciso fingir que queria morder e dar couces em todo o mundo, para me abrirem caminho; mas não magoei ninguem, felizmente.
Cheguei, finalmente á rua.
Olhei em torno procurando os meus amiguinhos. Não os avistei.
É que os paes, logo que viram tornar-se aquelle aperto perigoso para as crianças, as levaram ás pressas.
Foi isto, pelo menos, o que pensei, e por isso sem perder tempo, tomei caminho de casa. Não me enganára.
Antes de andar uma milha alcancei-os a todos, e chegámos á casa na hora do chá.
Depois de tudo acabado, comecei a pensar no infeliz dono do Muffles, e arrependi-me da peça que lhe pregára.
CAPITULO VIII
Nunca pude gostar daquelle menino chamado Norman.
Achava-o covarde e, ao mesmo tempo, vaidoso.
Não me podia esquecer de haver sido elle o auctor da morte da minha amiga Mimosa.
Um dia, elle veio fazer uma visita á casa de minha ama, e insistiu em dar um passeio montado ás minhas costas. Pensei, então, comigo: Bôa occasião para me vingar.
Pouco adiante do jardim havia um matto; e para alêm do matto um profundo fosso, constantemente cheio de lama.
Norman gabava-se de ser bom cavalleiro, e para se exhibir convidou os outros a que fossem vê-lo saltar o fosso.
Todos attenderam o convite, embora não acreditassem lá muito, que elle a tal se aventurasse.
Apenas partimos, indo o Norman escarranchado, ás minhas costas, dei tres corcovos, e saí a disparada do caminho, atirando-me pelo meio das moitas.
- Olhem, rapazes, griotu ainda Norman aos companheiros; vão correndo pela estrada, que vocês ainda chegarão a tempo de me vêr saltar o fosso.
- Espera, que verás como tu o vais saltar! disse eu commigo.
Onde os arbustos eram poucos e bem separados, corri devagar; depois lancei-me inesperadamente ao meio de uma moita de espinheiros.
A minha pélle é grossa e por isso não me feri; mas o rosto de Norman, mãos, pernas, ficaram bem arranhadinhas, e a roupa, rasgada pelos espinhos em muitos lugares.
Quando chegámos ao fosso, seu enthusiasmo estava já bem mais arrefeido; já nem mais se lembrava de transpo-lo, pois fazia desesperados esforços para deter-me, afim de saltar ao chão.
- Isso é que não, meu valente! pensei eu, adivinhando-lhe a intenção; não quero perder esta optima opportunidade para vingar a morte da Mimosa!
Continuei, pois, a galopar pela beira do fosso, e quando cheguei a um logar escorregadio e ingreme, parei de chofre, precipitando o gabola do Norman, que não teve tempo de segurar-se e foi mergulhar na lama grossa e preta.
Chegaram naquelle momento as outras crianças, que tinham vindo a correr pela estrada. Qual não foi, porêm, a sua surpreza e susto quando me encontraram sósinho, a olhar para o fosso! Não avistando o Norman, começaram a gritar:
- Norman, Norman! onde estás?
- Aqui! - Depressa! Acudam-me! respondeu, afinal, uma voz meio suffocada. Olharam para dentro do fosso.
Lá estava o Norman, de pé, sem poder dar um passo, mettido até a cintura na lama.
- Ajudem-me a saír daqui, disse elle, ao avistar os amiguinhos; ajudem-me a saír deste atoleiro.
Os gritos de Norman attrairam a attenção de dois homens que por ali passavam, e que se approximaram do fosso a vêr do que se tratava.
Em poucos minutos arrancaram de uma cerca um páu comprido e o estenderam ao Norman para que nelle se segurasse. Puxaram depois o páu, trazendo Norman para o terreno firme.
O gabola estava em misero estado! Todo molhado e coberto de lama, seus dentes batiam de frio e de susto.
Comecei a arrepender-me do que havia feito, e, assim, deixei-me ficar atraz das crianças que, ás pressas, levavam Norman para casa.
No dia seguinte eu soube que Norman caíra doente.
O medico chamado, receiando que sobreviesse a febre, mandou-o guardar a cama por muitos dias. Quando as crianças lhe perguntavam por Norman, elle sacudia a cabeça, e nada dizia.
Sei, porêm, que elle prohibira ás crianças de me cavalgarem, porque attribuiu a queda do doente a qualquer falta de cuidado da minha parte.
Eu, porêm, que bem sabia como tudo se passara, comecei a assustar-me do que tinha feito.
Quando Norman melhorou, e lhes contou o meu máu procedimento para com elle, todos começaram a tratar-me com menos carinho.
Na manhã seguinte o moço de estrebaria, como de costume, veio á nossa baia.
Nada me disse. Causou-me muito espanto vê-lo escovar e ensilhar o outro burro, meu companheiro, para levar a passeio o joãosinho e a Jenie.
D'ahi a poucos momentos Joãosinho entrou com cara triste e os olhos cheios de lagrimas.
- Neddy! disse elle, estou muito triste, muito triste mesmo! Vóvó não quer mais deixar-me passear com você. Diz que receia que você se torne máu outra vez e me derrube, como o fez ao pobre Norman. Oh, Neddy! querido Neddy! para que é que você fez aquillo?!
- Fiquei muito aborrecido, e desejava explicar a Joãosinho o meu odio ao gabola do Norman, com quem unicamente eu poderia ser máu. Com elle só e com mais ninguem! Mas o meu amiguinho não me saberia comprehender. O que fiz foi abaixar carinhosamente a cabeça, e tocar-lhe no hombro com o focinho.
- Cuidado, snr Joãosinho! gritou logo Roberto; não deixe esse bruto chegar-lhe perto; é capaz de o morder. Vamo-nos embora!
E agarrou Joãosinho pela mão, levando-o comsigo.
- Sim; bruto, máu, perverso! confirmou Eduardo, que, com os outros meninos, viera á porta da estrebaria.
É verdade que nem sempre Norman se porta como devia, mas Neddy não tinha o direito de tentar afoga-lo na lama. Eu de mim, não me metto mais com tal bruto!
- Nem eu! disse Ricardo.
- Nem eu! repetiam todos os outros.
Joãosinho ficou com a carinha muito triste.
Quando, porêm, Roberto o montou no outro burro e já se iam embora, elle ainda olhou para mim, dizendo com a sua vozinha doce:
- Pobre Neddy! Não se afflinja! Hei-de sempre ama-lo com d'antes, embora não mais possa monta-lo. Talvez, algum dia, você de novo fique manso. Não é verdade, Neddy?
Quando ouvi isto, veio-me a vontade de chorar. Era horrivel a minha situação. Assim, logo que Joãosinho partiu, escapei-me da estrebaria, e fugi para o pasto.
Ahi chegado, deitei-me sobre o capim, e comecei a meditar sobre todas as más acções que até então praticára: a queda da minha primeira ama, a qual lhe amassára o nariz; os logros pregados no lavrador, e a vingança contra elle exercida quando me castigou!
Pensei na vida feliz que tinha passado na minha actual residencia, na bondade com que todos sempre me trataram, no desastre de Norman.
Norman é verdade que matou a pobre Mimosa, mas não o fez de proposito, e o pae já o havia castigado!
Que direito, pois tinha eu de me deixar levar por sentimentos de vingança?
Pensei em Jenie e em Joãosinho, e no carinho que me dispensaram quando estive doente; e quando me lembrei que, devido á minha malvadez, elles nunca mais passeariam commigo, senti-me tão infeliz que não mais pude ficar quieto.
Agitava-me o coração um grande desespero. Levantei-me, então, e me puz a correr a galope por todos os lados, como si quizesse fugir de mim proprio! Quanto mais corria, porêm, mais infeliz me sentia, até que, afinal, bati com a cabeça num muro de pedra, e caí desmaiado ao chão.
Era já tarde, quando recobrei os sentidos, mas sem saber onde me achava.
Um pouco distante, á beira da estrada, avistei tres pessoas sentadas.
Estavam de costas para mim, e não podiam vêr-me.
Qual não foi a minha surpreza, porêm, quando nellas reconheci o dono do Muffles, com a mulher e o filho!
Approximei-me delles.
Pareciam infelizes e esfaimados.
Contaram-me, então, que o pobre Muffles fôra maltratado e pisado pelo povo no dia da feira; que, por isso, foram obrigados a deixa-lo no seu pasto. Elle andavam agora em busca de algum trabalho que os sustentasse, até Muffles poder representar novamente.
Ouvindo isto, senti ainda mais infeliz. Era eu, unicamente eu, o culpado de Muffles ser pisado, e de andar aquella pobre familia a soffrer fome por não ter dinheiro.
Acudiram-me, então, á memoria as palavras, que naquella manhã, me dissera o joãosinho, isto é, que esperava que algum dia eu de novo me tornasse bom.
- Pois tornar-me-ei desde já! pensei eu. Seguirei esta gente até a próxima aldeia,e ganharei algum dinheiro para ela, fazendo sortes como o Muffles.
Levantei-me, pois, resoluto, e os segui a trote até a porta de uma pequena hospedaria, onde pararam, pedindo ao dono que os abrigasse por aquella noite.
- Disseram, que dinheiro não tinham para paga-lo, mas estavam dispostos a trabalhar no que lhes ordenasse.
O hoteleiro sacudiu a cabeça, e lhes disse que tinha gente bastante na casa para todo o trabalho; que fossem mais adiante.
Justamente no momento em que, tristes e cabisbaixos, iam continuar o caminho, cheguei-me a trote, e saudei o dono da hospedaria; em seguida levantei-me nas patas de traz e comecei a dansar.
Executei, enfim, as sortes que Muffles costumava executar, e com tanta graça, que logo se reuniu muita gente par me admirar.
Quando julguei opportuno o momento de recolher as moedas, agarrei nos dentes o chapéo do homem, e o apresentei a todos os espectadores. Caíu nelle uma tal quantidade de moedas de cobre, que tive de despejar o conteúdo duas vezes no avental da mulher, que depois de contar o dinheiro, verificou achar-se possuidora de dois mil e quinhentos réis.
Trataram logo de ceiar, marido, mulher e filho, mandando que tambem me dessem um feixe de capim e me alojassem na estrebaria.
Na manhã seguinte fomos para uma pequena cidade, dali proxima, onde demos dois ou tres espectaculos em pontos diferentes.
Antes da hora de jantar, já tinha ganho para o homem vinte e tres mil réis.
Com isto julguei que ja tinha expiado a minha malvadez do dia da feira, e resolvi-me a voltar para a casa, a fim de mostrar ao meu amiguinho que já me havia regenerado. Acertei logo o caminho, e cheguei á casa á noite quando tudo estava quieto, provavelmente tomando chá.
Acabava apenas de chegar, quando vi um vagabundo a escalar o muro da horta com a intenção manifesta de roubar qualquer cousa do lado de dentro.
Segurei nos dentes o pé do gatuno, e puxei-o para baixo.
Elle poz-se a gritar por socorro, mas logo caíu, batendo com a cabeça na parede, e permanecendo sem sentido.
Neste momento, acudiu, correndo, outro vagabundo: dei-lhe um couce, que elle passou por mim, e o estendi logo ao lado do companheiro.
Mas elle tanto gritou que os criados saíram, afinal, correndo, para vêr o que acontecia.
Eu estava ainda perdo dos vagabundos, prompto para os escoucear, si tentassem levantar-se. Os criados os reconheceram, e os amarraram de mãos e pés, levando-os para dentro da casa até que a policia os viesse buscar.
Evitei assim que o jardim da minha ama, e, talvez, muitas outras casas, fossem arrombadas.
Todos apreciaram tanto a minha sagacidade, que foram de opinião que se me perdoasse a malvadez usada contra Norman, e que os meninos maiores pudessem montar-me durante os primeiros tempos.
Si eu me mostrasse bem manso, talvez Joãosinho e Jenie voltassem a me cavalgar como antigamente.
Para coroar a minha felicidade, soube, dahi a pouco dias, que Norman estava quasi bom, e que não me conserva rancor. Que lhe attribuira a anormalidade do meu procedimento, a um sapo, ou a qualquer outro animal, que me houvessem assustado, fazendo-me disparar!
Como me senti envergonhado ao ouvir isto!
Demaís, Norman parecia-me, agora, um menino muito melhor e mais generoso do que antes imaginára. Em todo caso elle não era vingativo.
CONCLUSÃO
Daquele dia em diante passei uma vida feliz.
A minha bondosa ama disse que nunca me mandaria embora, e que nada me haveria de faltar; que eu ficaria com a familia emquanto vivesse, e que cuidariam de mim o mais possivel.
Joãosinho que sempre me amára, mesmo quando fui máu, tornou-se o meu verdadeiro dono.
Todos os verões elle vinha de Londres fazer uma longa visita a avó, até ter dez annos.
Depois elle, Jenie, o pae e a mãe, mudaram-se para a Autralia.
Fiquei, então, pertencendo a Henrique, porque Henrique, mais do que os outros netos, passava mais tempo no campo com a avó.
Henrique não é tão meu amigo como Joãosinho; mas é bondoso, e nunca me trata mal; cuida sempre bem de mim, e chama-me seu velho Neddy. Estou agora envelhecendo, e, talvez, não viva muito tempo mais.
Por isso comecei, no inverno passado, a escrever a historia da minha vida e das minhas aventuras, porque quero que nos tratem a nós, os burros, com mais bondade, e que tambem lembrem de que muitas vezes somos mais sensatos, oh! muito mais, do que alguns desses sêres que se dizem humanos.
Seu amigo affeiçoado
NEDDY.
SOBRE A AUTORA DESTE LIVRO
Condessa de Ségur
Sophie Feodorovna Rostopchine, a Condessa de Ségur (São Petersburgo, 1 de agosto de 1799 — Paris, 9 de fevereiro de 1874) foi uma escritora russa, largamente conhecida no século XIX, como autora de obras-primas de literatura infantil.
Sua família era originária da Mongólia. O pai, Fiodor Vassilievitch Rostopchine era comandante-geral e, depois, Ministros das Relações Exteriores da Rússia. Em 1812 era prefeito de Moscovo durante a invasão do exército francês sob o comando de Napoleão Bonaparte. Enquanto os historiadores discutem a autoria da ideia de atear fogo à cidade, ao seu pai é atribuída a ideia de deixar a cidade arrasada para evitar sua conquista, apesar da oposição dos ricos proprietários. O incêndio e a "terra arrasada" - estratégias de defesa que minaram o exército invasor, forçaram Napoleão a uma retirada desastrosa.
Em 1814 a família Rostopchine foi forçada a partir para o exílio, primeiro dirigindo-se ao ducado de Varsóvia, depois para a Confederação Alemã e península italiana e, finalmente, em 1817, para a França, durante a Restauração dos Bourbon. Ali seu pai estabeleceu um salão, e tanto sua esposa como a filha se converteram ao Catolicismo Romano.
Foi no salão paterno que Sophie conheceu o Conde Eugène Ségur, com quem se casou a 14 de julho de 1819. Foi um matrimônio em grande parte infeliz: seu esposo era ausente, descuidado, além de pobre (até ter se tornado um dos Pares de França, em 1830), e suas visitas ao castelo onde morava a esposa eram bastante inconstantes, em Nouettes (próximo a L'Aigle, no Orne). A despeito disso, renderam-lhe oito filhos - a ponto de o conde referir-se à esposa como "la mère Gigogne" (ou: "a mãe Matrioska"), numa referência às bonecas de madeira típicas da Rússia, onde uma figura esconde outra em seu interior, e assim sucessivamente.
A Condessa de Ségur escreveu seu primeiro conto com a idade de 58 anos.
Bibliografia
Criadora de personagens eternos para o imaginário infantil, suas principais obras são "Sofia, A Desastrada" (ou, no Brasil, "Os Desastres de Sofia"), "Meninas Exemplares" e "As Férias", em que desenvolvem-se os personagens-mirins Sofia, Paulo, Camila e Madalena, além de "Memórias de um Burro". Os títulos originais de suas obras, foram:
- Un bon petit diable (Um Bom Diabrete)
- Les Malheurs de Sophie (Os Desastres De Sofia)
- Diloy le chemineau (O Caminheiro)
- Les Mémoires d'un âne (Memorias De Um Burro)
- Jean qui grogne et Jean qui rit(João que chora João que ri)
- Le Mauvais Génie (O Génio Do Mal)
- François le bossu
- Les Caprices de Gizelle
- Pauvre Blaise
- La Fortune de Gaspard (A Fortuna De Gaspar)
- Quel amour d'enfant ! (A Menina Insuportável)
- Les Petites Filles modèles (As Meninas Exemplares)
- La sœur de Gribouille (A Irmã do Inocente)
- Blondine (Novos Contos De Fadinhas)
- L'auberge de l'ange gardien (A Casa do Anjo da Guarda ou O Albergue do Anjo da Guarda)
- Les vacances (As férias)
- Après la Tempête (Depois da Tempestade)
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