quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O FILHO DO XEQUE





Do livro Biblioteca Infantil nº 52 - 6ª edição - Edições melhoramento
Autor Renato Sêneca Fleury






Nos arredores de Bagdá, a lendária cidade turca, vivia um menino por nome Abdalá, filho do xeque El-Modi.
Órfão desde pequenino, nem ao menos tinha uma irmã que pudesse carinhosamente conduzi-lo pelo caminho do bem. Assim, Abdalá era terrível e perigoso.
O pai, sempre ocupado com os mil negócios da tribo que chefiava, não tinha tempo para educar o pequeno. Deliberou então confiá-lo aos cuidados de um tio, homem respeitável por todos os motivos: velho, prático, bondoso e crente.
Este, porém, vivia atormentado com as diabruras do sobrinho e, afinal, desanimou de bem criá-lo. Abandonou-o à sorte, pois sobre ele não conseguira um pingo de força moral. Abdalá desrespeitando-o, zombava dele, aborrecendo-o constantemente, por sua más ações.
Esbordoar os cães, impiedosamente, era com ele. Apedrejar as aves, eis uma de suas prediletas distrações. Odiava os animais, odiava as crianças, odiava os homens... Pudera! Já crescido, jamais uma palavra de amor e de bondade lhe soara aos ouvidos. Vivendo entre caravanistas, escravos e salteadores, seu coração parece que se endurecia ao contato daquela gente rude, de alma fria.
As queixas contra o menino!...Eram sem conta, desde que nascia o sol.
O mercador vinha participar que Abdalá lhe surripiava um objeto de valor. O proprietário do pomar vizinho aparecia desalentado, para informar que o filho do xeque lhe furtava os melhores figos. O soldado, ameaçador, contava que Abdalá lhe enchera de areia o cachimbo. As velhas, cheias de rancor, vinham queixar-se dos ditos que o menino lhe dirigia. Os próprios sacerdotes eram alvo das diabruras do perverso, que não os poupava sequer nos momentos em que fervorosamente oravam...
Era demais! Aquilo não tinha fim...
O tio, sem ver meios com que sofrear o mau procedimento do rapaz, largou-o de uma vez.
Como castigá-lo? Como punir o sobrinho?
Tais e tantas fazia o peralta e desalmado, que todos o evitavam, pois a ninguém era dado corrigi-lo. Ai daquele que lhe tocasse com a ponta de um dedo...Incorreria, fatalmente, nas iras de El-Modi, que amava extremosamente o filho.
Quando o tio lhe ia dar conta do mau procedimento do pequeno, ria-se ele gostosamente, achando graça em tudo.
Abdalá crescia e seus maus costumes também.
Já ninguém podia vê-lo. Ao ouvirem seus passos, fugiam apavorados, homens, mulheres e crianças, como a escapar da peste ou de um perigo ainda maior. Até os cães o evitavam, raspando-se assustados em desabaladas correrias. Certa vez, apedrejou um velho respeitável, que se dirigia para o oásis de Rihan. O ancião, com um gesto de benevolência, como que abençoou o perverso.
Entretanto, nem sempre o menino tinha intuito malévolos. Quantas vezes, ao passear entre as tendas dos mercadores, não lhe passava pela mente sequer a idéia maldosa? Ao contrário, já muito o preocupava o isolamento em que vivia e, em seu íntimo, a voz da consciência como que o advertia; e ele notava certas mudanças de sentimentos; e principalmente desejava que o recebessem, que o acariciassem, que lhe dessem o perdão, como fizera aquele ancião de nobres feições. No entanto, não podia revelar a ninguém os seus estados de alma, porque lhe não dariam ouvidos. Era odiado, mil vezes mais do que odiava. Viravam-lhe o rosto, outros retiravam-se com precipitação, as mulheres, aflitas, agarravam os filhinhos, as velhas empalideciam de horror, somente em vê-lo.
Certa vez, quando mais o angustiavam o desprezo de todos, ouviu que diziam:


- Fujam! Fujam! Lá vem Abdalá, o "maldito"!


Aquelas palavras caíram-lhe dentro d'alma como brasas. "Maldito"!


O rapaz sentiu uma dor penetrante, tão funda no coração, que chorou.


Na verdade, era ele a maldição...

***
Veio vindo, veio vindo, olhos baixo, a alma abatida, Lacrimoso, abafando no peito os soluços, meditava, quase sucumbido:
- Lá no oásis de Rihan, ouvi contar que habita Ebn-Giafar, o velho solitário, o piedoso ancião, profeta que sabe perdoar. Como ir até ele? Grande e perigoso é o deserto! Areia, pó, e o fogo do sol...Sede, fome horrores e a morte! Entretanto, só Ebn-Giafar me dará o consolo do perdão.
Tomou a resolução de partir para Rihan.
E seguiu em busca do areal sem fim.
Ia só pensando em Alá, uma botija de água e o bordão de peregrino.
Alcançou o deserto, sentiu nos pés a escaldante areia, respirou o ar ressequido e morno, experimento na pele o sol que queimava.
Mas não parava. Caminhava resoluto, sempre à frente, embora sentindo que o cansaço lhe prendia as pernas. Não desanimava. Sentia que era necessária aquela penitência, para alcançar o perdão.
Após longas horas de caminhada, começou a ouvir tristes uivos vindos de muito longe. Parou, apurando os ouvidos e seguiu no rumo de onde vinham, até que encontrou um pobre são sedento, que mordia em desespero as areias quentes.
Abdalá chegou-se ao animal e deu-lhe toda a água que ainda lhe restava. O cão satisfeito, não o deixou, seguindo o benfeitor.
- Será meu companheiro, pensou o rapaz.
E prosseguiu mais animado.
Algum tempo depois, o cão, arrepiando os pelos, ergueu as orelhas, ladrou novamente, e pôs-se a pular como doido, pretendendo salta sobre o inimigo. Viu então Abdalá o perigo de que se livrara, advertido pelo animal: uma grande serpente, de escamas azuladas, achavam-se enrodilhada pouco adiante, pronta para saltar. Um pobre pássaro debatia-se pouco além, como que fascinado pela cobra.
- Por Maomé! exclamou o rapaz. E, criando coragem, avançou contra o mostro. Deu-lhe com o bordão que levava, até a serpente morrer.
O pássaro, ainda estonteado, deixou-se pegar por Abdalá, que o agasalhou contra o peito.
O oásis devia estar bem longe...
Mas o menino jamais esmorecia, Apertou o passo. Era preciso chegar.
Andou, andou muito. As horas pareciam longas, como longo era o deserto.
Afinal, Rihan emergiu, a distância, mostrando os seus leques de palmeiras.
O coração de Abdalá pulsou. Só então pensou em que Ebn-Giafar talvez o condenasse...
Mas continuou a marcha agora vagarosamente, desejoso de retardar o momento que tanto havia desejado antes.
Ao chegar, viu imediatamente, à entrada de uma caverna, um ancião de nobres feição, que para ele estendia os braços agasalhadores. Era o velho a quem apedrejara e que agora repetia o mesmo gesto de benevolência.
Abdalá atirou-se aos seus pés, sem proferir uma palavra, Mas as lágrimas que vertiam seus olhos, diziam da grande mágoa que o torturava.
Então, Ebn-Giafar passou as mão pelos seus cabelos empoeirados e lhes disse:
- Erguei-vos, Abdalá! Alá vos ama e vos perdoa. Em paz com os céus, em paz com vossa consciência, podereis voltar. Alá vos bendiz, porque redimistes vossas culpas com as boas ações que praticaste durante a peregrinação pelo deserto. Alá provou o vosso bom coração.
Ide! Que a jornada vos seja feliz.
Abdalá sentia-se outro. Respirava agora, o coração como que lhe crescera dentro do peito.
Uma caravana que passou pelo oásis conduziu o rapaz de volta a Bagdá.
Abdalá regressou à tribo, disposto a fazer o bem. A bondade havia brotado em seu coração.
Anos depois, morto El-Modi, o moço teve a chefia da tribo. Ebn-Giafar ainda vivia no oásis de Rihan, e o novo xeque distinguiu-o com muitas honras.
E dizendo que ainda hoje lamentam as tribos que nunca mais tenham havido um "chefe" como Abdalá, chamado o perfeito.
***
Eis a história com que as velhas, nas distantes passagens do Oriente, procuram emendar os netinhos travessos. É da tradição de Bagdá, e o exemplo do filho do xeque vai se perpetuando pelas gerações. Quando nasce um menino, o primeiro nome que ocorre é o de Abdalá: todos querem que tenham as virtudes de quem foi o mais bondoso e o mais justo chefe de que há notícia.

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