quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A CABRITINHA TEIMOSA

Do livro  Biblioteca Infantil nº 52 - 6ª edição - Edições melhoramento
Autor Renato Sêneca Fleury







Antigamente havia um velho criador que não era feliz com a criação de cabras. Já dez ou doze haviam sido devoradas pelos lobos. Era só soltá-las um bocado, para gozarem uns momentos de liberdade pelas montanhas, e elas não voltavam, Quando ia o velho procurá-las, as poças de sangue e os restos de ossos mostravam que as feras as tinha devorado...
- Oh! Os lobos!... exclamava o velho, penalizado, e ao mesmo tempo cheio de ódio contra esses animais terríveis que enchiam a mata vizinha.
Mas não desanimava. Novas cabras vinham para o cercado; novos trabalhos com o trato e a vigilância... Mas bastava soltá-las meia hora que fosse, mesmo ali por perto, e...adeus!
Lá no alto da montanha, onde a floresta começava, os lobos rondavam, esfaimados.
Atrevidos, chegavam a descer até perto dos currais, chegando a invadir aos quintais. Não havia criação que pudesse escapar aos seus dentes afiados.
O velho julgava-se o mais infeliz dos criadores. Pudera! cuidava com tal carinho de suas bichinhas, que tinham elas pêlo macio e brilhante, a carne tenra e nutrida.
Parece que os lobos estavam cevados!
Um dia o criador trouxe da feita uma cabrita que era mesmo uma lindeza. Alva como a neve, esperta como um sagüi, chifres longos, curvados e pontiagudos - e o que mais era - um lindo par de pingentes como dois brincos, que lhe davam ares de princesinha. Era tão galante, que o nome se impunha:
- É a nossa Princesa, disse o criador à sua mulher, orgulhoso do animalzinho. Parece-me que, com esta, irá  tudo bem!
Levou-a para o cercado, atou-lhe ao pescoço uma longa corda para que ela pudesse passear à vontade, pôs-lhe ao lado uma vasilha de barro com água limpa e fresca.
- Que mais? Isto aqui há de parecer-lhe um paraíso. A relva está verdinha e tenra, o cedro dá boa sombra para a Princesa reminar às horas de calor. Mas...espera...
Correu à casa,  trouxe um cincerro, pendurou-o ao pescoço da bichinha.
Era um regalo, para o velhote e a mulher, ficarem, à tarde, sentados à porta da cabana, espiando as artes da Princesa, muito viva, muito branca, muito linda, a tilintar o cincerro: dilim-dim-dilim-dim...
Os velhos adoravam a cabrinha. Não tinham filhos e ela já quase merecia honras de legítima herdeira do bondoso casal.
Mas um dia...
- Esta corda, tão áspera, raspa-me o pescoço! Que feia prisão este cercado! Estas relvas já me enfastiam.. E a Princesa ergueu a cabeça o mais alto que pode, para espiar a montanha. Era tudo tão belo lá fora! Grandes pedras para saltar, campos para correr, árvores de boa sombra...
Seus balidos, aquela tarde, foram longos e tristonhos. Que pena estar assim presa, se o mundo devia ser tão grade como não imaginava, as montanhas tão cheias de encantos, os campos de tão boa erva!
Os velhos estranharam os lamentos prolongados da Princesa e lhes pareceu que a cabrita entristecera.
Já não a viam saltar, nem erguer-se com graça nas patas traseira, como quem quer brigar.
Notaram, observando-a diariamente, que emagrecia a olhos vistos.
O velho afagava a bichinha com as mãos e até conversava com ela:
- Que te falta, Princesa? Tens boa relva, milho do melhor, água pura...Bem te compreendo! dizia o velho balançando a cabeça, em desânimo. Minha Princesa vai ter o mesmo fim: comida das feras...
O caso era que, presa no cercado, ela poderia morrer. Tudo fizera para ver se a cabrinha voltava à esperteza e alegria. Tudo foi inútil. Era preciso soltá-la.
- Estes bichinhos querem liberdade, largueza! Bem o sei, mas... os lobos?!
E o velhote ia assim tenteando.
Nesse tempo, a cabrita dizia lá consigo: "Minha velha mãe sempre me contava horríveis histórias de lobos, passadas nas montanhas e florestas, São bichos perigosos, é verdade! Mas a mim nada sucederá... As outras cabras, que foram devoradas, eram com certeza medrosa e não sabiam defender-se. Mas eu tenho coragem e um bom par de chifres pontudos e resistentes. Para correr, saltar e chifrar com firmeza, só eu! O lobo não há de pegar-me, que esperança! Aquela história do lobo e o cordeiro, tão repetida pelo mundo, parece-me velha e fora de moda...O caso é que não farei como o ingenuo cordeirinho, que foi beber no riacho e meteu-se em conversas com  mestre lobo. Ah! Isso é que não! Primeiro, não irei beber a nenhum riacho; segundo, não entendo a linguagem dos lobos...Se algum me surpreender com perguntas e ameaças, para que servem estas pernas ágeis? Se, contudo, não houver tempo de fugir, este chifres não valem nada? Valem, hão de valer, e o lobo sairá perdendo, na certa!
Ingenua e teimosa cabrinha!
Uma bela manhã a Princesa sentiu o laço mais frouxo. Forçou com o pescoço, o nó desatou e ela viu-se livre da corda.
Mas... a cerca?!
Ora, a cerca!
Duas chifradas, uma cabeçada e pronto!
Dito e feito. Correu para a cerca, meteu os chifres entre duas varas, afastou-as, torceu a cabeça, forçou mais e - zás! - estava do outro lado.
Arre! Até que enfim...
Não esperou mais nada. Correu  pela encosta, subiu ao alto da colina, saltou sobre umas pedras, galgou, correu ainda e, sempre subindo, chegou ao mais alto da montanha.
- Que bela vista! exclamou. Que ar delicioso aqui se respira! Quanta largueza, como é grande este mundo! Nunca pensei que fosse tão grande!
Divisou, lá embaixo, a cabana de seu dono, quase a sumir nos longes. E mal pode avistar o pequeno cercado, onde vivera.
- Agora sim! Posso dizer que o mundo é meu...
Encantada com a liberdade que gozava sobre a vastidão das montanhas, pôs-se a correr e saltar de um e outro lado. Trepava nas pedras, equilibrava-se prodigiosamente nos rochedos, transpunha com saltos arrojados os valos profundos, pulava ao alto dos montes, queria por-se cada vez mais acima. Resvalando pelas mimosas florinhas, balouçavam -se em curvaturas como lhes rendendo homenagens e aplaudindo a destreza. Um pássaro cantou e pareceu que a saudava. Cada vez mais cheia de si, a cabrita não se contentava com pular e correr. Rojava-se na relva, que era um tapete de veludo.
- Adeus, feio cercado! Nunca mais voltarei! Adeus, meu senhor, não fui feita para estar presa...
Resolveu conhecer a floresta. Subiu mais e achou-se junto à entrada da mata.
Espiou...espiou...A floresta pareceu-lhe triste e perigosa. Entretanto, fatigada, deitou-se um pouco a ruminar e, ruminando...adormeceu.
Ao despertar, o sol estava se escondendo. O bosque estava mais escuro. Espreguiçou-se um pouco e resolveu voltar.
O silencio era impressionante e a tarde caía, cheia de sambras esquisitas.
E veio vindo, e veio vindo, por um trilho que descia.
Nisto, ouviu um uivo longo e horrível.
Princesa estremeceu e parou assustada:
- Será mestre lobo? E esta?
Outro uivo, agora mais perto. E outro, bem próximo... E uma grande loba surgiu entre as sombras do caminho.
A cabrita deu um salto e atirou-se a correr. Mas pouco além, no descampado, o bicho tornou-lhe a frente. Ela estancou, disposta a não se entregar.
O lobo, calmamente, sentou-se sobre as patas traseiras. E Princesa bem viu que ele lambia o focinho, como se preparasse a boca para comê-la.
- Mestre lobo corre mais, pensou, desconsolada. Minhas pernas falharam...Mas meus chifres, esses darão que fazer ao malvado!
O lobo avançou uns passos, sem pressa, certo de que levaria nos dentes a bichinha. Seus olhos brilhavam.
A cabrita preparou-se para a luta. Quando o lobo avançou mais uns passos, ela se ergueu nas patas traseira, empinou o corpo e...pá! Mas sentiu as garras do bicho lhe roçaram o pescoço. Tornou a empinar-se e pá! outra marrada. As unhas da fera lhe riscaram o focinho. Ergue-se de novo, outra marrada, e outra, e outra...Pá!Pá!Pá!
O lobo divertia-se um pouquinho...
A cabrita já estava cansada e o sangue brotava do seu focinho, do pescoço, do dorso!
- Que unhas valentes! Mas meus chifres podem mais!
O lobo avançava, a cabrita recuava, empinava-se ...e pá!
Sentiu Princesa que as forças lhe faltavam.  Queria, porém, vender caro a vida. Lutaria até morrer!
Tentou ainda um último esforço de defesa, mas a fera caiu sobre ela, num bote final.
Estava perdida! E estava castigada a sua teimosia.
Neste momento, ouviu-se um tiro. O lobo, dando um tremendo urro, rolou pela encosta.
É que o velho criador saíra em procura de sua Princesa fujona e chegou a tempo de salvá-la.
***
Tempos depois, no pequeno cercado, Princesa amamentava dois bonitos cabritinhos. Eram seus filhos. Não trazia laço, mas não fugia. E a bela Princesa segredava aos filhinhos - Não fujam para a montanha! Mestre lobo é cruel!

Do livro  Biblioteca Infantil nº 52 - 6ª edição - Edições melhoramento

Autor Renato Sêneca Fleury 


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